Um duro ofício
Clotilde Tavares | 30 de janeiro de 2018Aqui escrevendo, rasgando, corrigindo, deletando, copiando, colando, me irritando, me aborrecendo, querendo desistir, jurando que vou fazer outra coisa. Aí vejo os originais do grande Honoré de Balzac – diz a lenda que ele corrigia as provas impressas até por 20 vezes e enlouquecia os editores. Relaxo, tomo um café e volto ao duro e delicioso ofício de inventar do nada personagens e situações, porque a história já está dentro da minha cabeça e se não sair termina me fazendo adoecer. #AVidaÉBoa #VidaDeEscritor#NóisSofreMaisNóisGoza
Amor, paixão, essa-coisa.
Clotilde Tavares | 1 de agosto de 2017Hoje o assunto é o amor.
Ô assunto complicado. Uns chamam de amor, outros chamam de paixão, outros de afinidade, outros de escrito-nas-estrelas. É essa coisa misteriosa, essa força centrífuga que lhe arranca de onde você está e lhe joga em cima de outra criatura, muitas vezes exatamente o oposto daquele ser ideal que você sonhava para a sua vida. Ai, amor, a quanto obrigas! Ai, surpresas do amor.
A criatura está assim distraída, à toa na vida, sentada no shopping ou no restaurante, quando aparece aquela pessoa que, assim que você põe o olho em cima, seu corpo se liquefaz, se derrete, que nem uma lava de vulcão, escorre pelo chão ficando na cadeira somente o vestido inútil, a bolsa esquecida, o relógio, o colar. Você não existe mais, derreteu-se, liquefez-se, desmanchou-se, apaixonou-se, incendiou-se.
Enquanto o amor-paixão-essacoisa consome a mata atlântica da sua vida com suas chamas incontroláveis, você descobre que a vida é boa, que você pode até morrer mas nem liga, que é preciso comprar novas taças, novos lençóis, novos óleos e incensos perfumados.
Tem coisas das quais você não abre mão – você continua sendo #ForaTemer – mas no resto, ah, no resto, o que é o amor senão dar razão a quem não tem? Se você quer ter razão, não serve pra amar, vá procurar outra coisa pra fazer.
Mas o bom é que tudo isso um dia passa. A ficha cai, a razão volta, o fogo recua e se solidifica outra vez, dando novamente uso ao vestido, à bolsa, ao relógio, ao colar. E você está pronta para outra, e você se lembra de Guimarães Rosa, quando disse que “o amor é um pássaro que põe ovos de ferro”.
Apois.
Decifro e devoro
Clotilde Tavares | 17 de janeiro de 2015Você fala e eu decifro. O que você não quer dizer, e não diz com palavras, diz com o gesto, com o olhar que foge do meu, com os dedos que pegam e soltam os objetos, com a ponta do pé que desenha círculos no ar. Você fala e pausa, e hesita, e omite – mas eu sei. A sua sobrancelha que se ergue um milímetro me diz o que quero saber, e quando você entreabre a boca e toca o lábio superior com a ponta da língua é como se escrevesse uma carta, um bilhete, demonstrando suas intenções. Falou sem respirar? Ou respirou antes de falar? A respiração foi longa ou curta? Onde estava o olhar, enquanto respirava? Qual a parte do corpo que você me mostra sem querer enquanto fala? Apalpa a nuca me mostrando o cotovelo? Ou abre os braços me mostrando a palma da mão? Adianta o ombro direito ao falar? Ah, esfinge, eu te decifro inteira e depois, saciada, também te devoro.
Selfie
Clotilde Tavares | 8 de janeiro de 2015Quem sou eu? A desorientada que acorda de manhã, sem saber em que planeta ou encarnação se encontra? A energética do meio-dia, andando de lá para cá, começando mais tarefas do que consegue terminar? A sempre-repleta do pós-almoço, dividida entre a gulodice e a disfunção hiatal? A que quer estar na rua quando está em casa e, na rua, não vê a hora de voltar pra casa? A feliz e cheia de paz no final da tarde, que lê na varanda, enquanto o mundo fica banhado na luz rósea do pôr-do-sol? A mal-humorada e impaciente quando precisa conviver contra a vontade? A seriemaníaca e noveleira noites em claro em frente à TV? O fantasma trôpego que acorda na madrugada para ir ao banheiro? A que se recusa a pendurar as sapatilhas? Ou aquela absolutamente feliz no momento em que a caneta desliza sobre o papel?