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O testamento do Judas

Clotilde Tavares | 3 de abril de 2021

Em Campina Grande, onde nasci e fui criada, era tradição malhar o Judas na noite de sábado de Aleluia. A gente construía o boneco, pendurava num poste, e ficava vigiando pra ninguém roubar; à noite, lia-se o testamento onde ele relatava as maldades e distribuía o que tinha. Depois, começava a malhação. Os testamentos eram muito engraçados mas esse que publico hoje já é fruto da minha mente mais madura e menos dada aos desfrutes da adolescência. Foi escrito há uns dez anos, e dormia sossegado numa gaveta. Agora, acordou.

O TESTAMENTO DO JUDAS – Versos de Clotilde Tavares

Eu vou ler para vocês
Com toda solenidade
O testamento de quem
Na vida só fez maldade
Foi só ódio e avareza
Zombou da honestidade
Praticou tanto a mentira
Que se esqueceu da verdade
Semeou fofoca e intriga
Cultivou a inimizade
Nunca soube o que era amor
Muito menos lealdade.

E o que diz o testamento
De quem nunca fez o bem?
– Não diz nada, meus amigos
Nada deixou pra ninguém
É uma página em branco
Nem uma linha contém.

E quem é essa pessoa?
Quem é esse marginal?
– É Judas Iscariotes
Que de forma tão brutal
Vendeu Jesus ao carrasco
Causando dor sem igual
Mas também é qualquer um
Que pratique obra do mal
Seja mulher, seja homem
Seja qualquer um mortal
Que tenha o crime na mente
Seja cruel, desleal
Ladrão, voraz e corrupto
Demagógico e venal
Falso, orgulhoso, bandido
Desprezível e imoral.

O Judas Iscariotes
Não está muito longe, não
Vive tão perto de nós
Ombro a ombro, mão a mão
É aquele parlamentar
Vendido à corrupção
É o burocrata cretino
Que nega autorização
Pelo prazer de negar
Porque ama dizer não
É o playboy dirigindo
Bêbado e na contramão
É o pai que abandona os filhos
É o padre que, no sermão
Prega uma coisa e faz outra
Sem a menor contrição
É o médico que atende mal
Buscando só o cifrão
É quem depreda o ambiente
Causando a poluição
Quem agride a natureza
Sem pensar no seu irmão
Quem liga o som nas alturas
Enlouquecendo o cristão
Quem falsifica remédio
Quem põe bromato no pão
Quem pratica só pecado
E prega a religião.

O fantoche pendurado
Que vemos nesta viela
Simboliza todos eles
Filhos de uma cadela
Vamos acabar com eles
Acabando por tabela
Com toda a raça de Judas
Aqui desta cidadela!

Mas antes de fazer isso
Eu peço mais paciência:
Vamos fazer autocrítica
Com a mão na consciência
Será que também não somos
Como Judas, com frequência?
É fácil olhar os defeitos
Dos outros na sua essência
E esquecer dos que nós temos
Disfarçar sua aparência
Posar de honesto e bonzinho
E simular coerência.
É certo que muitas vezes
Praticamos conivência
Permanecemos calados
Por medo e por displicência!
Vamos fazer este exame
Sem a menor complacência
Quem sabe não será isso
A sonhada transcendência
Que vai nos aproximar
Da mais divina indulgência?

Pois vamos malhar no Judas
Sem dó e sem compaixão
O tom da maldade humana
Da qual temos um quinhão
Mas vamos malhar sem raiva
Fazer disso diversão
Vamos malhar com alegria
Com prazer e com tesão
A raiva ofende a saúde
E contrai o coração
Dá cefaleia e gastrite
Provoca a hipertensão
Vamos fazer o brinquedo
Começar a malhação
Vamos lá, rapaziada!
Arraste o Judas no chão!

Versos de Clotilde Tavares

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Categorias
Arte, Comportamento, Cultura, Curiosidades, Humor
Tags
cultura popular, folclore brasileiro, Judas, Malhação do Judas, poesia
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Cultura popular, seiva da Vida

Clotilde Tavares | 23 de novembro de 2009

Um dia desses recebi um e-mail de um leitor que me perguntou como era que eu, uma professora universitária, formada em Medicina, com pós-graduação e outros badulaques acadêmicos, tinha tanta afinidade com o folclore, com a cultura popular, com as coisas do povo. “De onde vem essa ligação, Clotilde?” perguntou-me o leitor. “Como você penetrou nesse mundo?” Em vez de responder, quero contar algumas coisas da minha infância.

Campina Grande, meados do século XX.

Passei minha infância em Campina Grande, na Paraíba, na década de 1950. Pela manhã, quando e meus irmãos saíamos da quentura da cama, depois de escovar os dentes e banhar o rosto com água “quebrada a frieza”, vínhamos para a mesa tomar o café com pão, manteiga, cuscuz, ovo frito e leite. Depois do café era a hora do banho-de-sol na calçada de casa, onde Papai, indo para o trabalho diário no jornal, se despedia de nós. Pedíamos a bênção e ele sempre respondia: “Deus te abençoe.” Mamãe conversava com a vizinha assuntos secretos que se encerravam quando um de nós se aproximava. “Comadre, olhe os meninos…” E se calavam.

Depois do banho-de-sol entrávamos em casa e o rádio era ligado no programa “Retalhos do Sertão”, da Rádio Borborema, onde os repentistas José Gonçalves e Cícero Bernardes cantavam sextilhas, glosavam motes e, no final do programa, invariavelmente, disparavam num galope-à-beira-mar ou num martelo-a-desafio de tirar o fôlego. A manhã se adiantava, o programa de rádio terminava e íamos brincar no quintal, onde passávamos o tempo a construir com areia, fragmentos de madeira, latas e caixas vazias uma fazenda completa com a casa grande, a casa de farinha, e os cercados e currais onde eram abrigados os bois e cavalinhos de barro que Mamãe comprava na feira.

Na hora do almoço comíamos feijão, arroz, carne assada, farofa de cuscuz. Verduras e saladas não faziam parte do hábito alimentar. Depois da refeição, havia “um docinho”, que podia ser doce-de-leite ou um naco de goiabada em lata espetado num garfo. Tirada a mesa do almoço e arrumada a cozinha, começava a brincadeira de desenhar.

Mamãe mandava comprar na mercearia da esquina uma folha grande de papel cor-de-rosa que era usada para fazer embrulhos e pacotes, e cortava essa folha em pedaços menores. Desenhávamos muito e eu tenho ainda viva na memória a lembrança da textura daquele papel rústico e macio, que eu cobria de renques e mais renques de árvores, todas diferentes c umas das outras, com ramos retorcidos e estilizados.

Angelim-PE

Ao lado da mesa, Mamãe sempre às voltas com a máquina de costura contava casos e histórias da sua infância, passada nas terras do meu avô, primeiro no sítio Boqueirão, no Cariri paraibano e depois na Broca, em Angelim, agreste de Pernambuco. Eram muitas as histórias e uma das que mais gostávamos era a do eclipse total do Sol, que havia pegado a todos de surpresa: a uma hora da tarde, sem que ninguém soubesse antes o que iria acontecer, o dia havia de repente se convertido em noite, fazendo os passarinhos endoidarem à procura dos ninhos e as raposas procurarem as tocas, deixando todos estupefatos, no meio do roçado, mergulhados na escuridão, distantes de casa quase uma légua.

Nisso se passava a tarde e, no fim do dia, banhados e trocados de roupa, tomávamos a nossa sopa de feijão ou o prato de xerém com leite, seguidos de tapioca e café-com-leite. Na boquinha da noite já estávamos de novo na calçada, brincando de roda, de toca, e das brincadeiras “de menina”: anel, berlinda… Papai apontava na esquina e corríamos para encontrá-lo e com ele entrar em casa onde o víamos jantar e depois sentar-se na espreguiçadeira da sala para ler e ouvir rádio.

Começava então a hora mágica das histórias de trancoso que não podiam ser contadas de dia sob pena de ambos, contador e ouvinte, criarem rabo. A noite era hora também da leitura dos folhetos, e ainda posso ouvir a voz de Mamãe recitando “O Pavão Misterioso”, ou “Juvenal e o Dragão”. Depois era hora de lavar os pés, tomar um copo de leite com açúcar e ir dormir, depois de rezar o “Santo Anjo do Senhor/ Meu zeloso guardador/ Se a ti me confiou/ A piedade divina/ Sempre me rege/ Guarda/ Governa/ E ilumina/ Amém.”

O sono vinha rápido cerrando nossos olhos e abrindo a cortina da mente para os sonhos, povoados de paisagens do sertão e de seus personagens, feras encantadas, fazendeiros cruéis e princesas prisioneiras, almas do outro mundo e bichos que falavam.

Então, não é questão de gostar ou não da cultura popular. Ela é o elemento fundador da pessoa que sou hoje, faz parte de mim, do que faço. Ela determina meu papel no mundo, e dela me vem, através dessas profundas raízes, a própria seiva da Vida.

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Cultura, Memória
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Campina Grande, cultura popular, folclore, literatura de cordel, pavao misterioso, santo anjo do senhor
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