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Os maremotos da saudade

Clotilde Tavares | 6 de janeiro de 2018

balaustrada getulio vargas

Último dia do ano e eu resolvi dar uma volta de carro pela minha cidade Natal. Quase sem sentir, fui na direção dos bairros de Tirol e Petrópolis, onde gastei praticamente dez anos da minha juventude, tendo o Hospital das Clínicas e a minha casa na Pinto Martins como pontos de referência. Estava tudo lá como no passado, e passei por ali sem ver os edifícios, nem as estruturas de vidro fumê, nem o que foi acrescentado depois. Vi Natal dos anos 1970, e me vi também, com meus 45 quilos de pura energia, subindo e descendo aquelas ruas, a pé, carregada com os pesados livros de Medicina, indo para a rua do Motor onde eu atendia as crianças no Centro de Recuperação Nutricional da UFRN, ou o Pronto Socorro do Hospital das Clínicas, a Maternidade-Escola, a Pediatria. Passei de carro hoje, devagar, pela avenida Getúlio Vargas e olhei o mar – igualzinho ao daquele tempo, as nuvens cheias, e o céu com uma Lua ainda tímida e desbotada, a me espiar lá de cima. E antes que os maremotos das saudade agitassem meus olhos com o sal das lágrimas, prudentemente tomei a Prudente de Morais e voltei ao abrigo uterino dest’A Bolha onde, na poltrona macia e entre séries e livros, pretendo esperar o Ano Novo.

Publicado no Facebook em 31 de dezembro de 2017.

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Memória, Natal-RN, saudade
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O banho

Clotilde Tavares | 3 de fevereiro de 2015

banhoidademedia

Nesses tempos de falta de água, talvez a coisa certa seja retomar um costume da Idade Média, quando o banho era um acontecimento anual. Uma grande tina com água quente era colocada no aposento principal – muitas vezes o único aposento do domicílio – e o dono da casa tinha o privilégio de se banhar primeiro. Depois, e nesta ordem, vinham os filhos homens, e outros homens como sobrinhos e cunhados, então as mulheres, as crianças e, finalmente, os bebês. Nessa fase a água já estava tão suja que era fácil algo ou alguém se perder dentro da tina. Daí a frase, “Não jogue fora o bebê junto com a água do banho.”

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idade media, nao jogue fora o bebê com a agua do banho, seca no sudeste
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Uma visita importante

Clotilde Tavares | 24 de janeiro de 2015

Alessandra Stewart e eu. Dezembro de 1989.

Em 1989 eu morava em Capim Macio. Numa noite de dezembro, convidei uns amigos para comemorar meu aniversário e preparei tudo para recebê-los no jardim da frente. Dezembro todo mundo sabe como é: festa em todo canto, e como meu aniversário é no dia 14, sempre há dificuldade de juntar gente nesta data ou perto dela. Principalmente nesse ano, pois a minha festa coincidia com o FESTNATAL/Festival de Cinema e o Carnatal. Ao convidar meu vizinho da frente, Mano Macário, nome artístico de Luiz Antonio da Silva, ele disse logo que não podia vir, pois ia sair no bloco das Kengas, no Carnatal.

Mano era – e ainda é – um homem muito bonito. Nessa época, estava usando cerrada barba negra e me disse que ia tirar a barba para a caracterização que usaria no bloco, onde ia fazer “uma mocinha”. “Não seja por isso”, eu falei. “Quando sair do bloco, passe aqui, com o visual de mocinha mesmo, que eu terei prazer em lhe receber. Vou inventar para os convidados que estou esperando uma atriz do Festival de Cinema.” E assim ficamos combinados, as horas passaram, chegou a noite e os convidados começaram a chegar.

Anunciei que estava esperando a atriz Alessandra Stewart, amiga minha, que estava no elenco do filme “Faca de Dois Gumes”. Falei que tinha conhecido ela no Rio há tempos e que tínhamos ficado muito amigas. O nome, obviamente, era inventado e não havia atriz com esse nome no elenco do filme. Uma das minhas amigas disse logo: “Ah, eu sei quem é.” E outra perguntou: “Não é aquela que trabalhou no filme Tal?” e eu: “É essa mesma.” E enfeitei a mentira: “Ela passou um tempo nos Estados Unidos e voltou só pra fazer esse filme.” A primeira amiga comentou: “Ela é linda! Muito boa atriz.” E a outra: “Não é ela que teve um caso com Reginaldo Farias?” E eu: “Essa mesma!”

Essas minhas duas amigas são daquele tipo que sabem de tudo, viram todos os filmes, leram todos os livros e conhecem tudo – você entende, você deve conhecer gente assim. E a festa foi correndo e eu alimentando o suspense: “Alessandra está demorando!” E as outras, ansiosas pra conhecer a celebridade: “Mas ela vem?” E eu: “Vem sim, ela prometeu.”

E lá pras tantas chega no portão Mano Macário, com um minivestido preto de bolas brancas, peruca arrasadora, sem barba, maquiadíssimo, salto alto, uma verdadeira patricinha. Obviamente, via-se que era um homem vestido de mulher, mas irreconhecível até para os seus amigos, acostumados e a vê-lo com a frondosa barba preta. Quando eu o vi, saí aos gritos: “Alessandra Stewart, quanta honra! Entre, querida, pois quero apresentá-las às minhas amigas.” E vou te contar: dinheiro nenhum paga a cara das duas quando viram a presepada.

Foi lindo.

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Alessandra Stewart, Carnatal, cinema brasileiro, Faca de dois gumes, FestNatal, hoax, Kengas, Mano Macário, Memória
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Memória

Clotilde Tavares | 22 de janeiro de 2015
caderneta_vo_clotilde

Caderneta da minha avó Clotilde Pereira Tavares (1886-1979), que também tinha a mania das anotações.

Essa obsessão pelo registro, pela cronologia, pela organização dos eventos da minha vida, pelos currículos, esta agonia do diário, da agenda, dos álbuns de lembranças, de fotografias, de recortes. Os books, os relatos, as genealogias. É como se houvesse uma obrigação, uma urgência de deixar tudo organizado, como um testemunho do que fiz, do que realizei, para que a posteridade não pense que eu desperdicei a minha vida.

Mas estou me tratando.

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Noite de terror

Clotilde Tavares | 12 de janeiro de 2015

ogrito

Em meados dos anos noventa a Reitoria da UFRN me convocou para acompanhar uns alunos em um projeto. Quarenta e cinco rapazes e moças, de cursos variados, três dias numa cidade pequena para “um experiência de troca com a comunidade”, seja lá o que isso signifique. Minha função era circular pela cidade olhando o que os estudantes estavam fazendo e dando uma força se necessário.

E lá fui eu arrumar a bagagem: colchonete, cobertor, travesseiro, uma toalha, roupas. Como sempre, levei caderno, caneta, um livro pra ler, o celular (que não funcionou – era anos 90), a câmera. Nessa época, eu estudava astrologia e tarô, e levei meu baralho, uma caixa de fósforo e a vela que acendia sempre quando estudava o oráculo. Em um carro da universidade lá fomos nós, Serra do Doutor acima, muito acima de Currais Novos para esse lugar chamado Lagoa Nova, em pleno mês de maio, onde o clima era igualzinho ao da minha Campina Grande, aquela aragemzinha fina, fria, tão gostosa e tão limpa, principalmente com céu azul e sol brilhando. Os quarenta e cinco estudantes descobrindo a América. Dormir no chão, sobre o colchonete de 2 cm de espessura, usar banheiros alagados e unissex, comer gororobas indescritíveis e ensinar ao povo “inculto” o que é certo, o que se deve comer, como lavar as mãos, como se deve educar os filhos e etc. Investigar, pesquisar, aplicar formulários obsoletos desde a década de 1970, quando já eram uma metodologia ultrapassada.

Na primeira noite, os trios elétricos do Carnaval fora de época de Currais Novos, o Carnaxelita, colocam em estado falimentar o fornecimento de energia da região e a escuridão desce sobre a cidade e sobre o alojamento. A noite é chuvosa, sem lua nem estrela, e nada se enxerga, um verdadeiro breu. No banheiro, uma mocinha, nua e ensaboada, grita aterrorizada, tomada de pavor por causa da escuridão. Grita, grita sem parar, uma gritaria assustadora. As amigas informam: “Ela morre de medo do escuro.” Freneticamente, só pelo tato, desarrumo minha mala tão bem organizada para encontrar a vela e o fósforo que iria usar para a leitura do baralho e que é a única vela de todo o alojamento. Acesa, acalma-se o pânico da donzela, que é resgatada do banheiro, pálida e molhada. As amigas deitam-se com ela, colchonetes unidos, e quando a vela acaba trazendo novamente a escuridão, a criatura é tomada de pânico mais uma vez, e recomeça a gritar. E assim vai até que a madrugada trazer a claridade. Com o Sol, a calma desce sobre o alojamento, com estudantes e professora extenuados pela noite de terror. A vida às vezes parece um filme. Pois é.

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Lagoa Nova, medo do escuro, pânico, UFRN
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A batalha da Cultura

Clotilde Tavares | 16 de setembro de 2013
Solar da Madalena, um pedaço da história de Macaíba.

Solar da Madalena, um pedaço da história de Macaíba.

Na semana passada fui fazer palestra na Academia Macaibense de Letras, sobre um livro do escritor Octacílio Alecrim, o livro “Província Submersa” sobre o qual já falei aqui.

Para quem não conhece, Macaíba é uma cidade bem próxima a Natal, onde a gente chega de carro em trinta minutos. No final do século XIX e início do século XX foi o berço da nobreza açucareira do Rio Grande do Norte, junto com a cidade de Ceará Mirim, ambas no entorno da Capital. Depois, com a mudança do foco da economia, essas cidades perderam a sua hegemonia – sim, porque enquanto a cana-de-açúcar dominava a economia ambas as cidades eram mais importantes do que Natal.

Essa Academia pode a muitos parecer coisa de gente metida a besta. “Onde já se viu? Macaíba com Academia de Letras?”, é a frase que já ouvi algumas vezes. Na verdade, uma instituição como essa  – em qualquer lugar, em qualquer cidade – serve para preservar a memória, reunir gente interessada em letras e história, elevar a auto-estima da cidade, estimular os jovens à leitura, e um monte de outras coisas que eu poderia relacionar aqui e que, por extensa que fosse a lista, você provavelmente acrescentaria ainda mais alguns itens.

Então eu louvo essa iniciativa, e louvo mais ainda a paciência e o desprendimento dessas pessoas cujo esforço é pouco ou nada reconhecido.

O pior de tudo é que há instâncias – pessoas e instituições – que, além de não ajudarem, trabalham contra, como se pode ver nos dois exemplos abaixo, que refletem a falência da gestão pública na área da educação e da cultura.

1 – A palestra estava marcada para as 15 horas. Chegamos cerca de 14h15 e encontramos o local – Pax Clube – fechado. Depois de esperarmos em pé, em frente, durante uns vinte minutos, fomos (o presidente da Academia, juiz Cícero Martins de Macedo Filho, o acadêmico e historiador Anderson Tavares de Lyra e esta que vos tecla) à Secretaria Municipal que administra o prédio. Lá nos informaram que “o rapaz” que tinha a chave já tinha ido abrir o local. Voltamos, e nada. O camarada só chegou às 15h15. A essa altura já éramos vinte pessoas mais ou menos esperando de pé, ao ar livre, e escutei depois “o rapaz” dizer a um conhecido que, ao sair para abrir o local havia parado em casa para almoçar e depois havia esquecido!

2 – Uma das professoras presentes à palestra não foi liberada de boa vontade pela diretora da escola para comparecer. Segundo a diretora, somente professores de Português teriam direito a serem liberados para um evento na Academia de Letras, e a professora em questão era de História.

Então minha gente, haja força e energia para lutar a Batalha da Cultura, como dizia o grande Vingt-Un Rosado. Eu formo nessas fileiras, e quem sabe um dia a gente ganha a guerra?

———–

Mais sobre a Academia Macaibense de Letras aqui e aqui.

Blog de Anderson Tavares de Lyra.

Mais sobre essa entidade que atende por nome de “o rapaz”, e que tem como companheiras “a moça” e “o sistema”.

E finalmente, eu estou procurando um jeito de disponibilizar a íntegra da palestra aqui neste post. 

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Academia de Letras, Academia Macaibense de Letras, Anderson Tavares de Lyra, Literatura, Macaíba, Octacílio Alecrim
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Radinho de pilha e conjunto Ban-Lon

Clotilde Tavares | 10 de setembro de 2013

Eu estava lá no facebook, na página “Modinhas fora de moda” –  show que a cantora Fidélia Cassandra vai estrear no próximo dia 25 de setembro no Teatro Severino Cabral, em Campina Grande. Lá, encontrei a foto desse radinho de pilha e a pergunta: Alguém já teve um deste?

Eu tive. Papai era doido por novidades e um amigo dele trouxe um dos Estados Unidos – que naquele tempo a gente chamava “América”. Papai comprou e me deu de presente. Quando eu passava com ele na rua as pessoas paravam para ver, ninguém acreditava que era um rádio. A cidade era Campina Grande, o ano era 1960, a capinha de couro era marrom e o radinho era verde. Eu tinha 13-14 anos e a música que tocava era Chega de Saudade, com João Gilberto, que Mamãe chamava “o Cansadinho” – ela era fã de Nelson Gonçalves e não entendia como uma cara que não tinha voz e que cantava como quem tinha acabado de subir correndo uma ladeira pudesse gravar um disco.

Parceiro inseparável do radinho de pilha nessa época dourada da minha juventude era o meu conjunto Ban-Lon. Era esse o nome que a gente dava ao twin-set, conjunto de blusa e casaquinho que a moda ressuscitou agora depois de tantos anos. O meu foi comprado com sacrifîcio, à prestação, de uma conhecida de Mamãe que vendia roupas importadas. Era verde claro, os botões perolados, uma gracinha. Era importado, tinha uma etiqueta chique que causava sensação entre as minhas colegas de turma no Colégio Alfredo Dantas, que usavam os similares nacionais, muito feinhos. O meu não: era legítimo, era um luxo!
Este post é dedicado a minha amiga-de-infância e BFF Gladis Vivane, que tem um excelente blog sobre moda, o Salto Agulha. 
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anos 60, Ban-Lon, Campina Grande, conjunto Ban-Lon, João Gilberto, radinho, Radio de pilha
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Os antigos contavam

Clotilde Tavares | 7 de setembro de 2013
Moças. Anos 1930. Arquivo de família.

Moças. Anos 1930. Arquivo de família.

Os antigos contavam:

A moça gosta de fazer piadas, de pregar peças, de enganar os outros. Faz isso por diversão, e para chamar a atenção.

Um dia o empregado da fazenda mata uma cobra e atira o bicho morto para um canto da cerca. A moça vai, escondido de todos, carrega a cobra morta para dentro de casa, bota dentro da rede, faz que vai se deitar e começa o alarido: “Ai ai ai, me acudam, uma cobra, uma cobra!” Todos correm, lá está ela aos gritos, descabelada, mostrando a cobra na rede. Os outros com cuidado se aproximam e veem logo que o animal não se mexe, está morto, e o empregado diz lá de fora: “É a cobra que eu matei hoje de manhã.” A mãe briga com a moça. “Isso não se faz, assustando a família desse jeito.”

A cobra é retirada, a moça fica rindo-se pelos cantos do susto que pregou em todos. Vai na cozinha, bebe um copo de água, dá um volta pela casa, pega o bordado e vai sentar na varanda, o casamento está perto, o noivo mora longe e ela se distrai bordando o enxoval.

Mais tarde, sente a vista cansada e resolve se deitar um pouco. A família entregue às suas tarefas, a casa está em sossego. Tão logo entra no quarto, e vai para a rede, começa tudo outra vez: “Ai ai ai, me acudam, me socorram, uma cobra, uma cobra!” A mãe e a tia na cozinha, o empregado na horta, a velha com o cachimbo na boca lá no tanque lavando roupa, ninguém se importa muito: é a moça de novo com suas brincadeiras. Como ninguém dá atenção, ela se cala.

Mais tarde a família a encontra na rede, dura, um fio de saliva a escorrer pelo canto da boca, os olhos virados, a língua escura. Entre os seios virgens, a negra jararaca ressona, tranquila, livre do veneno.

Aí os antigos dizem que as cobras se casam para a vida inteira. Quando a fêmea morre, o macho sente, e vem atrás dela, pelo cheiro. Encontra o rastro, encontra a rede, encontra a moça.

Essa é a história.

 

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conto popular, folclore sobre cobra, histórias de cobra, lenda nordestina, Memória, tradição
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Deixe de pantim!

Clotilde Tavares | 27 de dezembro de 2011

Um dia desses, discutia-se numa das listas que freqüento na Internet sobre o significado das palavras “pantim” e “muganga”. Bráulio Tavares escreveu sobre isso um dia desses no seu blog.

x

Papai e Mamãe

Eu passei minha infância ouvindo as duas palavras, incorporadas no rico dialeto caririzeiro-paraibano que Mamãe falava.

Pantim é difícil de definir. É quando você faz algo para “distrair o inimigo”, ou seja, quando negaceia, disfarça, enrola… Ou quando você falsifica uma ação para obter algo que não quer explicar diretamente. Já muganga é trejeito facial ou corporal, careta.

Voltando ao “pantim”, o diálogo abaixo, travado entre meus pais numa noite, explica melhor:

– Nilo, onde tu tava até uma hora dessa? – Mamãe, direta e nada sutil, atacava com a pergunta.

– Mas minha filha, é somente uma da manhã.

– Sim, mas onde tu tava?

– Você sabe Fulano? – começava papai. – Presidente da Associação Comercial? Pois eu encontrei com ele ontem…

– Não tou falando de ontem, mas de hoje. Onde é que tu tava?

– Espere, eu preciso lhe explicar. Você sabe que em Campina, desde que o prefeito mudou, que todos esses órgãos, como a Associação Comercial, a Federação das Indústrias, a…

Era aí que mamãe interrompia, já impaciente:

– “Ômi”, deixa de pantim e diz logo onde é que tu tava até uma hora dessa!

(…)

Postei esse diálogo na lista para exemplificar o que era o tal do pantim. Aí Leo Sodré, participante da lista, escreveu:

– Mas, onde Nilo estava mesmo? É bem capaz de ter levado Omega nessa farrinha…” (Omega era o avô de Leo, amigo de Papai).

Eu escrevi:

– Nilo devia estar com Omega no cabaré de Zefa Tributino, ou na Unidade Moreninha. Os dois assinavam ponto num ou noutro lugar toda noite.” (As referências são à vida noturna de Campina Grande na década de 1950/60)

Aí Bob Motta, que é poeta, escreveu:

Nilo tava c’á bixiga, (A)
e se sintindo no céu. (B)
Lhe juro, Crotilde, amiga, (A)
foi de beréu in beréu. (B)
Teve lá no Canaríin, (C)
dispôi saiu de finíin, (C)
mode qui num tava só; (X)
duis putêro de Campina, (D)
visitô os das Bunina, (D)
da Prata e Bodocongó… (X)

O poeta Bob Motta.

(Veja o esquema de rimas: o 1º verso rima com o 3º; — o 2º com o 4º; — o 5º com o 6º; — o 7º com o 10º; — e o 8º com o 9º. A estrofe é uma décima que comporta variados esquemas de rima, sendo este citado apenas um deles. A métrica é sete sílabas, redondilha maior, que você reproduz pronunciando em voz alta as palavras “ma-ra-cá, ma-ra-ca-tu”. Além disso, Bob Motta usa a chamada “linguagem matuta”, que consiste em um “português estropiado” – que não é usada nem pelo cantador de viola, nem pelo autor de folhetos de cordel e nem por mim, que procuramos usar sempre o português correto, mas é característica da chamada “poesia matuta”, cujo principal representante foi o poeta Catulo da Paixão Cearense. Forneço essa explicação para que as pessoas entendam como é complexa e rica a arte da poesia popular nordestina.)

Eu, que não deixo verso sem resposta, respondi seguindo o mesmo esquema, mas no calor do improviso deixei escapar a rima da terceira linha.

Nilo não tava sozinho
Na rota da sacanagem
Com o seu amigo Omega
Em total camaradagem
Lá em Zefa Tributino
Beberam uísque do fino
Com Paraguaíta e Nina
E com Chiquinha Dezoito
Pintaram o sete e o oito
Nos cabarés de Campina…

Bob Motta escreveu, repondendo:

Nilo tava de zonzêra,
lá na Ìndios Carirís,
bebeu quage a noite intêra,
no Canaríin, pidiu bis.
Na Unidade Moreninha,
lá nais Bunina intêrinha,
o peste num tava só;
tava prá lá de intêro,
foi in tudo qui é putêro,
da Prata e Bodocongó…

Aí eu fechei:

E quando chegou em casa
Mais pra lá do que pra cá,
Cleuza já tava na brasa
E começou o fuá:
Neguinho, conte direito!
Me conte de todo jeito,
Eu lhe peço mesmo assim!
Onde tu tava, maldito?
Tu acha isso bonito?
Ômi, deixe de pantim!


Este post é dedicado à pesquisadora Maria Alice Amorim, minha especial amiga, cujo trabalho sobre poesia popular está merecendo um post especial somente para ela, coisa que venho devendo há meses.


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Meu amor por D. Pedro I

Clotilde Tavares | 7 de setembro de 2010

Quando, aos onze anos de idade, fui estudar no Alfredo Dantas, em Campina Grande, descobri que, nas comemorações do 7 de setembro eu teria que desfilar marchando, mas na última fila, porque era pequena para a minha idade e era a menorzinha de todas. No primeiro ensaio, as meninas maiores riam de nós, as “pequenas”, e eu, valendo-me de “desmaios” de mentira que D. Alcide, a diretora, e Mamãe tomaram como verdadeiros, consegui ser retirada da formatura e dispensada da humilhação pública de ser a última menina das fileiras.

Aos quatorze anos, já tendo conseguido alguns centímetros a mais, fui tomada de paixão avassaladora por D. Pedro I, ou melhor, pelo garoto de quinze anos que representava o Imperador, cavalgando um imenso cavalo negro que o pai dele mandava vir diretamente da fazenda para o filho montar no “dia 7”. O menino era tão lindo, com seu bigode desenhado a lápis, a jaqueta azul com botões dourados e a calça branca enfiada no cano das botas negras de couro, que eu sentia o coração parar quando ele passava, com as ferraduras do cavalo tirando faíscas nas pedras do calçamento.

Esperei ansiosamente ser escolhida para fazer parte do pelotão das “gregas”, meninas vestidas com uma túnica curta que deixava à mostra as pernas e uns dez centímetros de coxa. Quando já me considerava eleita fui recusada porque além das pernas grossas era preciso também ser bonita, e eu não era. Para me consolar, comecei a brincar com os instrumentos da banda e descobri que era hábil no tarol; alguém me ensinou uns solos e daí a pouco eu era a nova sensação do ginásio, entre rufos e contratempos. O tarol vinha na frente da banda, e era uma posição de destaque, onde o que valia era a habilidade e não as pernas grossas ou a cara bonita. Saí orgulhosíssima para o primeiro ensaio nas ruas da cidade, alimentando a secreta esperança de que D. Pedro reparasse em mim.

Mas deu tudo errado. Na cidade pequena, a novidade logo chegou aos ouvidos de Papai que, quando cheguei da aula, proibiu minha nascente carreira marcial com uma frase seca: “Não quero filha minha tocando tambor pelo meio da rua”. E pronto. Novamente jogada para o último pelotão, sem tarol ou roupa de grega, só me restou desmaiar no sol quente e ser dispensada outra vez da formatura.

Quanto a D. Pedro, nunca mais o vi, nem soube dele. A voraz passagem do tempo consumiu na minha memória o seu nome, deixando apenas o bigode feito a lápis, o lampejo da jaqueta azul num dia claro de sol e o grito de “Independência ou morte!” lançado pela sua garganta adolescente enquanto o cavalo negro erguia para o ar as patas indóceis.

No meu livro Coração Parahybano que você pode baixar clicando aqui, estão essa e outras crônicas.

A foto mostra o desfile de 7 de setembro de 1973, em Campina Grande-PB e o colégio a desfilar é o Colégio das Lurdinas. O fato que narro na crônica deve ter se passado uns dez anos antes desse desfile que a imagem mostra, mas pouca coisa havia mudado desde então.

Essa e outras fotos sobre o passado de Campina estão no blog Retalhos Históricos de Campina Grande.

Talvez você também goste de ler o texto sobre a data que publiquei aqui neste blog há um ano. É um texto do qual gosto muito, e os leitores também gostaram.

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