A Guerra de Doze
Clotilde Tavares | 26 de novembro de 2021 Um dia perguntei a tia Filipa onde eram todos aqueles lugares maravilhosos, chamados Lorena, Alemanha, Baviera, Gênova e Bruxelas. Ela respondeu:
– Não sei direito não, Dinis, mas deve ser longe como o diabo, ali por perto da Turquia, já quase na beira do mundo! Em Serra Talhada, existe uma família Lorena: portanto esses lugares devem ser pra lá do Sertão do Pajeú, de Serra Talhada pra cima, mais de sessenta léguas! Ou então, é pr’os lados do Piauí, entre a Turquia e a Alemanha! A guerra do Doutor Santa Cruz contra o Governo da Paraíba, parece que foi pr’aquelas bandas, em 1912: mas o que eu me admiro é que uns chamam ela de “A Guerra de Doze”, e outros de “A Guerra de Catorze”, e a gente fica sem saber quantos Reis se meteram nela, se foram doze ou catorze!
Ariano Suassuna, “Romance d’A Pedra do Reino”(1)
No final do século XIX o país passava por muitas mudanças com a Abolição, em 1888, a República, em 1889, e as diversas facções políticas se realinhavam, se reestruturavam e lutavam pelo poder. Havia grandes desavenças políticas, e os Partidos Liberal e Conservador se readaptavam à nova ordem.
Em 5 de agosto de 1891 foi promulgada a primeira Constituição Republicana da Paraíba, trazendo modificações nas instituições, pois as províncias haviam sido transformadas em estados, cada um com constituição própria. A reorganização política dos municípios abalou estruturas de poder consolidadas, com ameaças à oligarquia dominante.
Dr. Augusto de Santa Cruz Oliveira
Foi nesse contexto de profundas transformações políticas que cresceu Augusto de Santa Cruz Oliveira, nascido em 1875, filho de João de Santa Cruz Oliveira e de Ornicinda Bezerra, sendo esta filha do Tenente Manoel dos Santos Bezerra, de tradicional família da vila de Alagoa do Monteiro, na região do Cariri Paraibano.
João de Santa Cruz Oliveira havia chegado àquela localidade na segunda metade do século XIX proveniente da vila de Correntes, no Agreste de Pernambuco. Logo se tornou figura destacada na região, dono de várias fazendas, coronel da Guarda Nacional, político influente e deputado provincial pelo Partido Liberal na 25ª. Legislatura (1884/1885). O casal João/Ornicinda teve cinco filhos: Miguel, Arthur, Augusto, Theotonio e Francisca. Os três primeiros se formaram na instituição de ensino mais prestigiada do país àquela época: a Faculdade de Direito do Recife, onde Miguel formou-se em 1891 e Artur e Augusto em 1895.
Monteiro, por volta do final do século XIX.
Durante alguns anos, em Monteiro, o comando político havia sido da família Santa Cruz. Além do Cel. João de Santa Cruz Oliveira, Miguel de Santa Cruz Oliveira, seu filho mais velho, também se destacou na vida pública, tendo sido deputado provincial em 1892 e 1894.
O Dr. Augusto de Santa Cruz Oliveira, era mais afeito à política do que os irmãos Arthur e Miguel, que preferiram dedicar-se à magistratura, tendo ocupado ambos e por várias vezes cargos de juiz e promotor em diferentes comarcas da Paraíba, Pernambuco e Alagoas. O irmão Theotonio de Santa Cruz Oliveira, conhecido por “Seu Santos”, mais novo, apaixonado pelas lides rurais, vivia nas fazendas da família. Pelo temperamento, pelo gosto da luta e pela vocação, Augusto foi o herdeiro político natural do pai, que havia falecido antes de 1895. Aos 23 anos, em 1898, já era promotor público em Monteiro.
No início do século XX, o presidente da província da Paraíba Álvaro Machado querendo desmantelar o poder exercido pelos Santa Cruz na região, resolveu investir na liderança do Cel. Pedro Bezerra da Silveira Leal, homem de origem humilde, que havia galgado seu posto às custas de esforço pessoal, sem proceder de família importante. Além disso, era semi-analfabeto. Aos olhos do poder central, sediado na capital, seria uma figura mais fácil de manobrar do que o voluntarioso e ilustrado bacharel Santa Cruz, afeito ao poder, ao mando, carismático, possuidor de vontade própria, com projetos políticos pessoais e liderança consolidada e inconteste.
A indicação pelo governo central do coronel Pedro Bezerra soou para Augusto como um desprestígio, um insulto às suas qualidades. Formado, promotor, ilustrado, rico, filho de família tradicional, não se conformava em ser preterido dessa forma. A mesma coisa havia ocorrido no vizinho município paraibano de Teixeira, onde o comando político havia sido transferido para o Coronel Dario Ramalho de Carvalho Lima, em detrimento do Dr. Franklin Dantas, médico, líder político até então.
Rompido com os chefes locais, o Dr. Augusto Santa Cruz protagonizou uma série de episódios onde imperou a violência, com perseguições, espancamentos, invasões de vilas, tiroteios e mortes. Em 1910, rompeu com Pedro Bezerra, envolveu-se em emboscadas e invadiu a vila de São Tomé (atualmente a cidade de Sumé-PB).
Por esses crimes foi pronunciado pela Justiça. Inconformado, em maio de 1911 cercou a vila de Monteiro com 200 homens armados sob o seu comando, quebrou a cadeia, libertou os presos e fez vista grossa aos desatinos que seus homens cometeram pela cidade, quebrando portas, saqueando lojas e bens dos inimigos. Ao final da escaramuça, tomou como reféns as autoridades locais, conduzindo os prisioneiros para sua fazenda Areal. Augusto Santa Cruz pretendia negociar a liberdade deles em troca de anistia dos crimes pelos quais estava sendo acusado.(2)
O governador ignorou os pedidos de negociação e enviou força policial a Monteiro para prendê-lo e libertar os reféns. A fazenda Areal foi atacada pelas tropas e depois de intenso tiroteio Santa Cruz conseguiu evadir-se com seus homens. Os reféns foram sendo soltos aos poucos, ou foram fugindo, aproveitando as brechas da segurança. A força policial, depois do cerco, queimou completamente a fazenda, destruindo tudo o que encontrou pela frente.
Mas Santa Cruz não desistiu. Reorganizou suas forças, aliou-se a Franklin Dantas, líder também desprestigiado no Teixeira, junto com o qual traçou planos de invadir a capital da Paraíba. Para isso, conseguiu reunir um “exército” de mais de 400 homens, entre moradores, empregados, fugitivos da justiça, ex-cangaceiros, amigos e parentes(3).
Em maio de 1912, à frente dessa beligerante coluna, o Dr. Augusto Santa Cruz invadiu Patos, Taperoá, Santa Luzia do Sabugi, Soledade e São João do Cariri. A partir daí, frente à resistência oferecida pelo governo estadual e vendo a impossibilidade de continuar tendo sucesso no tresloucado projeto, fugiu para Pernambuco e em março de 1913 foi submetido a júri popular em Monteiro, com os irmãos Miguel e Arthur atuando na defesa, sendo absolvido por unanimidade.
Depois disso, exerceu o cargo de juiz de Direito em várias localidades de Pernambuco. Aposentou-se em Limoeiro-PE, onde faleceu, em 31 de outubro de 1944, aos 69 anos de idade.
NOTAS
1. SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1972. 3. ed. p. 57.
2. As autoridades sequestradas foram: Pedro Bezerra, prefeito; José Inojosa, promotor público; Capitão Albino, comerciante e fazendeiro; Major José Basílio, comerciante e fazendeiro; e Victor Antunes, chefe da Agência do Correio da Vila de Alagoa do Monteiro. NUNES FILHO, Pedro. Guerreiro Togado: fatos históricos de Alagoa do Monteiro.Recife, Ed. Universitária, 1997. A fazenda Areal se localiza atualmente no município de Prata-PB
3. Desse exército, fazia parte, como seu lugar-tenente e homem de confiança, Julio Salgado, irmão de Teotônio Salgado de Vasconcelos, meu bisavô. Julio Salgado e sua mulher Quitéria Amélia Borba Salgado (Sinhá), meus tios-avós, foram padrinhos de batismo de minha mãe, Cleuza Santa Cruz Quirino.
As fotos de Monteiro antiga e do Dr. Santa Cruz foram reproduzidas do livro Guerreiro Togado.
A história está resumida neste post, mas é muito maior e cheia de enredos, muito mais bandeirosa e cavalariana, como diria Ariano Suassuna.