Natal cidade querida
Clotilde Tavares | 7 de junho de 2013DISCURSO PROFERIDO PELA ESCRITORA CLOTILDE TAVARES NA CÂMARA MUNICIPAL DE NATAL POR OCASIÃO DO RECEBIMENTO DO TÍTULO DE CIDADÃ NATALENSE, NO DIA 6 DE JUNHO DE 2013.
Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal de Natal, em nome do qual saúdo as demais autoridades presentes.
Exmo. Sr. Vereador Hugo Manso, autor da proposta que me concede este título, meu querido amigo.
Amigos, companheiros de trabalho, meus professores, meus alunos, artistas, escritores, familiares,
Senhoras, Senhores,
Apesar do ambiente ser formal, eu não quero aqui fazer um discurso formal, um discurso de terno e gravata.
O que quero agora é contar a vocês uma história de amor. A história de um caso de amor que mantenho com esta cidade há mais de quarenta anos.
Tudo começou em 1970 quando aqui cheguei, vinda de Campina Grande, para estudar Medicina. Era o meu primeiro ano longe de casa, morando numa pensão na rua Voluntários da Pátria, ali perto da Santa Cruz da Bica, quase no Baldo. Sem amigos, sem família, logo nos primeiros dias tive que ir ao Hospital das Clínicas tirar um atestado médico e me vi, de repente, suspensa entre o céu e o mar na balaustrada da avenida Getúlio Vargas. Ali, às duas e meia da tarde, envolvida por aquela sinfonia azul que ia do mar de safira ao céu turquesa, naquele instante, capturada pela beleza, me apaixonei por esta terra.
Esses primeiros anos foram tempos heróicos. Muitas vezes simplesmente não havia dinheiro, e como matar a fome que meu corpo jovem e saudável manifestava quando o que eu tinha dava apenas para uma grapete e um pão doce, que deviam me sustentar por vinte e quatro horas? Mas era essa mesma juventude que me fazia ir e voltar a pé todos os dias da pensão, na rua Voluntários da Pátria ao Hospital das Clínicas, e parecia tão perto!
Ao lado das tarefas da faculdade, dos estudos, dos plantões, e aulas práticas, comecei a me ambientar na vida cultural da cidade. Iniciei no teatro em 1971, com o Grupo Alavanca de Teatro, tendo à frente Racine Santos, que ensaiava nos altos do Teatro de Amadores de Natal, na rua Voluntários da Pátria, onde também conheci e convivi com Sandoval Wanderley. Comecei também a estudar música – outro grande sonho -, na Escola de Música do Rio Grande do Norte, onde fui aluna de violoncelo do professor Piero Severi e integrei por um ano o naipe das cordas da Orquestra Sinfônica, sob a regência do maestro Clóvis Pereira. Mas a Faculdade me tomava todo o tempo e o teatro e a música precisaram ser deixados de lado.
Comecei a conhecer as pessoas e a fazer amizades, pessoas de teatro, gente da música, os colegas de faculdade, e os meus mestres na Medicina: Dr. Hiram Diogo Fernandes, Dr. Gilberto Wanderley, Dra. Ivalda Santana, Dr. Celso Matias, Dr. Onofre Junior, Dr. Heriberto Bezerra, Dr. Eudes Moura… Os nomes desses professores vêm à minha mente quando evoco aqueles que contribuíram decisivamente para a minha formação médica e também como ser humano e ressalto ainda, com destaque, o nome do Dr. Lauro Gonçalves Bezerra, que me abriu caminhos e horizontes, com quem trabalhei diariamente por mais de dez anos, na dura lide da saúde pública, num tempo em que não existia SUS nem PSF, subindo e descendo as escorregadias ladeiras da rua do Motor e convivendo com a comunidade de Brasília Teimosa. Quero também prestar minha homenagem de imorredoura saudade à Dra. Giselda Trigueiro, que foi para mim uma inspiração e exemplo a ser imitado como médica e cientista, pelas suas aulas magistrais e conduta humana com o paciente mas também como mulher bonita e elegante, como pessoa à frente do seu tempo, com inteligência superior e humanidade cativante, e que me distinguiu com a sua amizade.
Nos últimos anos de faculdade, já morando em Areia Preta, na rua Pinto Martins, eu me encantava todo dia com a visão mais querida desta cidade: a da balaustrada da Avenida Getulio Vargas, palco do meu primeiro encontro amoroso com Natal. Indo e voltando diariamente para o Hospital das Clínicas, aquele azul me alimentava e me envolvia e a paisagem deslumbrante atuava como um energético, me acalmava, me alimentava, me revigorava, recarregava minhas baterias.
A intenção era me formar em Medicina e voltar para Campina Grande, mas quem disse que eu pude? Em 1975, ao colar grau, Natal já havia me capturado com seu perfume, seu encanto, seu céu de brigadeiro e o carinho dos amigos que aqui eu já tinha.
Quando fui fazer mestrado no Recife, onde fiquei nos anos de 1978 e 1979, passei esses dois anos sem vir a Natal – era grande o medo que tinha de vir passar um final de semana aqui e não conseguir mais voltar para o Recife.
Nesta cidade querida vi correrem os anos mais belos da minha vida. Como professora do antigo Departamento de Saúde Coletiva e Nutrição da UFRN batalhei pela Saúde Pública, especificamente a causa do aleitamento materno e da nutrição infantil por anos, e produzi trabalhos dos quais ainda hoje me orgulho. Foram quase vinte anos de militância ininterrupta nessa área, ao lado do Dr. Lauro Bezerra, pioneiro do ensino da Nutrição no Rio Grande do Norte. E enquanto a vida ia tocando seu curso a música, o teatro, e a literatura continuavam ocupando os interstícios entre os estudos e trabalhos na área da saúde.
Alguém aí da platéia que me conhece há muito tempo – talvez até o vereador que me deu esse título – deve estar querendo me perguntar:
– Mas Clotilde, e a boemia? As noitadas? Vai passar por cima de tudo isso?
Eu respondo:
– Como poderia? Até os quarenta anos de idade fui uma grande boêmia, e aproveitei bastante a vida, minha gente! Conhecia todos os bares e botecos dessa cidade, da Tenda do Cigano ao Café Nice, do Chernobyl ao Tirraguso, do Mintchura ao Teco-Teco, do Equilibrista à Barraca de Santiago. Fui sócia-fundadora da República Independente da Praia dos Artistas; no verão, era habitante do Território Livre da Redinha, e sócia-foliã-honorária da Banda Gália, uma das maiores experiências anarco-lírico-carnavalescas que essa cidade já teve, junto com Olinto Rocha, Carlos Piru, Eugenio Cunha, Márcio Capriglione, Julinho Rezende, Zé Avelino, Sergio Dieb, Diva Cunha… E quando o clarim rompia a primeira nota na noite estrelada de Natal eu já caía dentro, no frevo, usando as fantasias mais loucas que alguém possa imaginar. Ah, e lembro dos meus queridos amigos dessa época, que já se foram, já se encantaram: Chico Miséria, André de Melo Lima, Sergio Dieb, Kiria Eleison, Malu Aguiar, Olinto Rocha. Quanta saudade!
Foram anos muito loucos! Foram anos experimentando o perigo, a alucinação da velocidade, os paraísos artificiais, a embriaguez dos sentidos. Até a última gota, esgotei essa tulipa dourada do Prazer, sorvida sem culpa, sem medo, e sem limite. Esgotadas as taças, aprendi que é preciso experimentar de tudo, mas tudo tem limite. E aos quarenta anos, decretei encerrada minha carreira na boemia.
A vida me pedia uma mudança. A Medicina, agora concentrada na docência e na pesquisa na área de Saúde Pública, preenchia uma parte do meu dia, dos meus interesses, mas eu sentia sempre, vindo do mais fundo das minhas entranhas, o chamado da Arte. E foi assim que o teatro voltou à minha vida em 1990, a partir de um encontro com Marcos Bulhões, hoje doutor em teatro pela USP e professor daquela Universidade. Naquele, tempo, Bulhões era ator da Stabanada Companhia de Teatro e estava selecionando atores para um espetáculo.
Foi o início de uma parceria diária militando na cena teatral da cidade. Fizemos, Bulhões e eu, muitos espetáculos, performances, intervenções cênicas, demos oficinas, cursos, éramos “duas-almas-num-corpo-só”. Como não havia espaço na minha vida para duas coisas tão absorventes, considerei que já havia dedicado mais de vinte anos à Medicina, e que agora era hora de voltar às artes. Eu tinha 42 anos de idade, E não tive medo de mudar. Transferi-me então para o Departamento de Artes da UFRN, onde passei a ensinar Folclore Brasileiro e disciplinas ligadas ao teatro.
Foi nessa época, a partir de 1990, que minha carreira de escritora começou a se encaminhar. Fui colunista semanal por anos do Jornal de Natal, Jornal de Hoje, O Mossoroense, Revista RN-Econômico, Revista da Telepesquisa, e na Tribuna do Norte, onde escrevi por dez anos, todos os domingos.
Os livros começam a aparecer a partir de 1987 e já são tantos! Livros, artigos, peças de teatro, folhetos de cordel… Entre todos eles, o meu livro que mais gosto: “Natal a Noiva do Sol”, adotado nas escolas da cidade, com o título emprestado da obra de Cascudo, quando ele diz as palavras imortais que eu sempre assino embaixo:
“Natal, Noiva do Sol, minha cidade querida, deu-me o que sempre esperei: a tranquilidade do espírito, a paz do coração, o amor pelas coisas humildes do mundo, no meio das quais sempre vivi. (…)”
O que dizer mais, de uma vida tão rica e tão produtiva, construída neste chão natalense, respirando o mesmo ar que Câmara Cascudo respirou, contemplando o mar aberto em navegos que Zila Mamede contemplou, e ouvindo as romanceiras tão caras aos ouvidos do mestre Deífilo Gurgel?
Aqui desfruto de perenes e sólidas amizades, como meus companheiros do Rotary e minha amiga quase-irmã Aldanira Barreto, em nome da qual saúdo o rotarismo natalense.
Os que foram meus alunos e hoje estão ocupando cargos importantes, e quando cruzo com eles em algum evento, blindados e defendidos por uma corte de assessores, se destacam do grupo quando me veem e me cumprimentam com aquele que é o meu maior título:
“ – Professora, que bom ver a Sra!…”
Meus parceiros na batalha da cultura: Henrique Fontes e a Casa da Ribeira, João Marcelino, Marcílio Amorim e o Elenco Mosh, Carlos Fialho e a editora Jovens Escribas. A homenagem a estes grandes amigos que já se foram: Sandoval Wanderley, Chico Vila, Jaime Lúcio, Lenício Queiroga, Fernando Ataíde, Carlos Nereu, todos agora fazendo teatro na Eternidade; e Luís Carlos Guimarães, Bosco Lopes, Black-Out, Celso da Silveira, sentados numa nuvem, fazendo versos…
Amigos? Impossível citar! Um ano não seria suficiente para esgotar a lista das amizades, meu maior patrimônio nesta terra.
Minha família querida:
Meu filho mais velho, Rômulo Tavares, publicitário, músico, compositor, brilhante em tudo o que faz, um homem bom e decente, com raízes plantadas aqui e que me continua através dos meus dois netos: Isabela Albuquerque Tavares, aluna do curso de Direito, e Marcelo Rodrigues Tavares, ainda adolescente. As mães dos meus netos, Viviane Albuquerque, psicóloga, e Telma Rodrigues, professora de teatro.
Minha filha Ana Morena Tavares Ramos, empresária, contrabaixista, cantora, atriz, e tudo o mais que ela quiser ser porque é talentosa e linda, e me enche de orgulho a cada dia pelo que é e pelo que faz. Junto com meu querido genro Anderson Foca ela lidera um dos empreendimentos culturais de maior sucesso nesta terra: o Combo Cultural do Sol, e movimentam a cena da cidade em eventos de porte, dois deles em parceria com a Casa da Ribeira: o Circuito Ribeira e a Virada Natal.
Ligados a mim por laços familiares indiretos, uma vez que são sogros da minha filha, o casal José Freitas/Lucidete, paraenses aqui radicados, também são minha família nesta cidade.
Ao longo dessa fala eu citei muitos nomes. Nos discursos, as pessoas sempre dizem que não vão citar nomes para não correr o risco de esquecer alguém. Mas eu não me importo. Eu quero correr esse risco, porque enquanto vou desfiando essas recordações os nomes vêm vindo à minha memória e é impossível deixar de citá-los, mesmo sabendo que não vou poder citá-los todos.
E também há aqueles que fazem parte da minha vida e que eu não sei os nomes, os natalenses anônimos, cidadãos desta cidade, a moça que me atende no caixa da loja, o gari que recolhe o lixo, o carteiro, a telefonista que está do outro lado do fio, o frentista que abastece meu carro, homens e mulheres que fazem parte da minha vida e que agora me recebem como conterrâneos e cabem todos dentro do meu coração.
O escritor Nei Leandro de Castro uma vez escreveu:
“Clotilde Tavares é a fada madrinha e a fada zangada do cotidiano. Ela protege Natal com uma varinha de condão e um porrete feito de madeira que cupim não rói.”
É como fada madrinha que me agora me dirijo, nesta casa que é do povo, aos seus representantes, os nobres vereadores que aqui fazem seu trabalho, principalmente ao vereador Hugo Manso, para agradecer esta homenagem, que para mim é como uma flor rara, que regarei com a minha gratidão, e que agora segue embelezando minha vida.
Mas também é como fada zangada do cotidiano que quero deixar aqui o meu primeiro recado como natalense legítima:
– Senhores vereadores! Tomem conta da minha cidade! Fiscalizem os governantes para ver se eles estão se comportando. Ajudem a melhorar a vida do cidadão propondo na área da saúde, da educação, da segurança, do transporte. E tratem a cultura com o respeito que ela merece, e não como diversão de final de semana. Cuidem da minha cidade! Eu estou de olho em vocês.
Minha gente!
Eu amo Natal!
Amo o deslumbramento de mergulhar nesse azul e nesse ouro que é a atmosfera da cidade. Azul do céu de brigadeiro, ouro do Sol e das acácias que ornamentam as avenidas.
Amo a carícia do vento, e o perfume do mato ali nas dunas da Via Costeira.
Amo o bulício do Alecrim no dia da feira, as agitações noturnas em Ponta Negra, os saraus nas livrarias, as conversas nos corredores dos shoppings, as lentas visitas aos sebos no centro da cidade.
Amo essa magia, esse encantamento que torna esta cidade especial entre todas as cidades do mundo. É alguma coisa imponderável, uma brisa, um sopro angélico, um murmúrio de fadas, uma sensação de dia nascendo a toda hora, quando a gente olha para este céu tão sem nuvens, tão luminoso.
Amo as dunas suaves e recortadas sobre o céu da tarde, quando as contemplo da minha varanda, relembrando a sensual anatomia dos corpos femininos.
Amo o Potengi à tardinha, recebendo o sol poente, vermelho e preguiçoso, que se aninha nos braços verdes e escuros do rio.
Amo o hospitaleiro povo natalense, agora também oficialmente meu povo, recebendo quem vem de fora com a mesa posta e a rede armada, o pirão de peixe quentinho e saboroso, o suco de mangaba, a carne de sol.
Porque em Natal quem mora aqui vive rindo à toa porque sabe que desfruta do privilégio de viver nesta esquina do continente, terra de sol, perfume e alegria.
MUITO OBRIGADA!