16 de junho: Bloomsday
Clotilde Tavares | 16 de junho de 2009Hoje é o Bloomsday, ou melhor, o dia de Bloom. Mas quem é Bloom, e por que há um dia dedicado a ele?
Curiosamente, Bloom não é uma pessoa real. É um personagem fictício chamado Leopold Bloom e criado pelo escritor irlandês James Joyce, nascido em Dublin em 1882 e falecido na Suiça em 1941. Joyce é considerado um dos mais importantes escritores do século XX e Leopold Bloom é o personagem principal do seu livro Ulisses, que tem a fama de ser o livro mais citado e menos lido da literatura mundial.
A ação do livro decorre durante 16 horas do dia 16 de junho de 1904, e representa – isso aqui numa descrição muito simplista – os acontecimentos da vida de Leopold Bloom durante esse dia, utilizando-se o autor da técnica do fluxo de consciência, de piadas, de paródias, de fragmentos justapostos, tudo isso sgnificando uma nova forma de contar uma história, uma nova técncica do romance que é uma das grandes contribuições do livro para a literatura modernista do século XX.
Como a maioria das pessoas, eu também não li o Ulisses por inteiro. Mas me dá muito prazer abri-lo ao acaso e ler trechos, e já fiz uma adaptação do famoso “monólogo de Molly Bloom” para o teatro, que eu pretendia levar à cena em 2004 no centenário do Bloomsday. Como não encontrei parceiros dispostos a topar a parada, e o teatro é uma arte coletiva, ninguém faz sozinho, engavetei o projeto como outros tantos. Mas o texto é grandioso e sempre me dá muito prazer lê-lo outra vez.
Em Natal, durante alguns anos, chefiei as comemorações do Bloomsday junto com Arlene Venâncio, na época aluna da pós-graduação do curso de Letras e que era entusiasmada com Joyce. Fizemos umas duas ou três comemorações na antiga A.S. Livros e uma na Bienal do Livro de Natal em 2003, que coincidiu com o Bloomsday.
Este dia é comemorado em todo o mundo e as comemorações exigem que as pessoas declamem poemas de Joyce, bebam bastante, cantem e façam aquilo que se chama a “polifonia”: depois de ler o trecho final do monólogo de Molly Bloom, que encerra o livro, em quantas línguas forem possíveis entre os participantes, lê-se novamente o trecho em todas as línguas, em voz alta e ao mesmo tempo. Cabia a mim ler o trecho em português, o que me deixava sempre muito feliz.
Além da polifonia, que tinha um efeito final muito excitante, lembro-me do belo Paulo Marcelo, aluno também da UFRN, cantando a canção irlandesa Molly Malone e finalmente do acontecimento mais inusitado que penso já ter havido em qualquer Bloomsday: na comemoração que houve na Bienal do Livro, no auditório repleto, enquanto se sucediam os recitativos, o recinto foi invadido pelo poeta Sopa D’Osso, emblemático na sua magreza, com seu sobretudo verde-escuro, olhos loucos, estado completamente alterado de consciência, a declamar um poema de Joyce traduzido por ele para o tupi-guarani.
Fique então com o trecho final do monólogo de Molly Bloom, que é todo escrito assim mesmo, sem pontuação, pois essa era a técnica de Joyce, o famoso fluxo da consciência. Leia em voz alta e não procure entender. Deixe-se levar pelas palavras, deixe-se tomar pelo som da sua voz e comemore hoje comigo, com todos os leitores deste blog e com todos os joyceanos do mundo este escritor sem par, esta obra sem fronteiras.
Trecho final do monólogo de Molly Bloom, encontrado nas duas últimas páginas do Ulisses, com tradução de Antonio Houaiss:
“… ..o sol brilha para você ele disse no dia que a gente estava deitado entre os rododendros no cabeço do Howth no terno de tuíde cinza e chapéu de palha dele dia que levei ele a se propor a mim sim primeiro eu dei a ele um pouquinho do bolinho-de-cheiro da minha boca e era ano bissexto como agora sim dezasseis anos atrás meu Deus depois desse beijo longo eu quase perdi minha respiração sim ele disse que eu era uma flor da montanha sim assim a gente é uma flor todo o corpo de uma mulher sim essa foi uma coisa verdadeira que ele disse na vida dele e o sol brilha para você hoje isso foi por que eu gostei dele porque eu via que ele entendia ou sentia o que é uma mulher eu sabia que eu podia dar um jeito nele e eu dei a ele todo o prazer que eu podia levando ele até que ele me pediu pra dizer sim e eu não queria responder só olhando primeiro para o mar e o céu eu estava pensando em tantas coisas que ele não sabia de Mulvey e do Sr Stanhope e Hesier e meu pai e do velho capitão Grovas e os marinheiros brincando de coelho-sai e pula-carniça e lavar-pratos como eles chamavam no cais e o sentinela na frente da casa do Governador com a coisa em redor do capacete branco dele pobre diabo meio tomado e as garotas espanholas se rindo nos xailes e nas grandes travessas delas e os pregões da manhã os gregos e os judeus e os árabes e o diabo sabe quem mais de todos os confins da Europa e a Rua do Duque e o mercado de aves todas cacarejando em frente do Larby Sharon e os pobres dos burricos escorregando meio dormidos e os sujeitos vagos nas mantas dormitando na sombra nos degraus e as rodas grandes das carroças de touros e o velho castelo milhares de anos velho e aquèles mouros bonitos todos de branco e tuìbantes como reis pedindo à gente pra sentar nas lojinhas pequeninas deles e Ronda com as velhas janelas das posadas olhos vislumbrados em muxarabiê escondidos para o amante dela beijar o ferro e as bodegas de vinho meio abertas à noite e as castanholas e a noite que a gente perdeu o bote em Algeciras o vigia indo por ali sereno com a lanterna dele e oh aquela tremenda torrente profunda oh e o mar o mar carmesim às vezes como fogo e os poentes gloriosos e as figueiras nos jardins da Alameda sim e as ruazinhas esquisitas e casas rosas e azuis e amarelas e os rosais e os jasmins e gerânios e cactos e Gibraltar eu mocinha onde eu era uma Flor da montanha sim quando eu punha a rosa em minha cabeleira como as garotas andaluzas costumavam ou devo usar uma vermelha sim e como ele me beijou contra a muralha mourisca e eu pensei tão bem a ele como a outro e então eu pedi a ele com os meus olhos para pedir de novo sim e então ele me pediu quereria eu sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus os meus braços em torno dele sim e eu puxei ele pra baixo pra mim para ele poder sentir meus peitos todos perfume sim o coração dele batia como louco e sim eu disse sim eu quero Sims.”
Veja aqui videos sobre o tema e a atriz Angeline Ball arrasando como Molly Bloom.
Clotilde estou morrendo de saudades de você e dos nossos Bloomsdays. Ainda sonho contigo no Alberto Maranhão declamando, recitando e gozando o monólogo de Molly Bloom…. beijos Arlene Venâncio
gente, sabe uma coisa que deixa esse texto muito menos sem pé nem cabeça? pontue ele como achar que a fala pontuaria! Leia em voa alta, com entonação, esforçando a meste pra fazer uma figura das cenas. Cara, eu chorei. Me pareceu que ela pensou todo o contexto da vida dela antes de dizer realmente sim, numa indecisão. Talvez haja um outro…
Élcio, quem precisa ter pé e cabeça é gente. Texto não precisa… 😉 Minha mente também é linear pra caramba, mas aprendi a dar umas sacolejadas nela pra o mundo não me parecer tão quadrado. Por isso abro Joyce – e Dante, e Cascudo, e Guimarães Rosa, e Platão, e Lusíadas, e Bíblia, e o que vier em qualquer lugar e começo. A mente linear toma um susto, mas fica muito bonita quando está assustada…
Clotilde, embora eu seja um leitor voraz, nunca me entusiasmei com Joyce. Sua técnica (seja qual for o nome que tenha) desagrada à minha mente linear de cientista. Talvez eu nunca tenha tentado com afinco suficiente, ou talvez eu seja apenas um conservador (Picasso e outros “modernistas” também não fazem minha cabeça). Enfim, vocês artistas têm um modo diferente de encarar o mundo , mas eu não consigo ver beleza nesses textos sem pé nem cabeça. Elcio.