O bacalhau da Paixão
Clotilde Tavares | 2 de abril de 2010Hoje fui almoçar o famoso “bacalhau da sexta-feira santa” na casa do casal Paula Pires / Evandro Fernandes, tradição que cumpro sempre que estou em Natal nesta data e que já vem se repetindo há quase uma década.
Evandro é meu ex-marido. Nos separamos em 1985 mas mantemos uma grande amizade, sincera, alegre, e carregada de confiança e respeito. Paula, que está com ele praticamente desde que nos separamos, é professora do Departamento de Letras da UFRN e eu tenho com ela um diálogo rico e interminável sobre livros e idéias. Aliás, quando visito o casal, converso muito mais com ela do que com ele. E nessa conversa vai conversa vem terminamos por estabelecer esse encontro ritual em torno do bacalhau da sexta feira da Paixão, porque Paula também é uma cozinheira de mão cheia e tem prazer em me receber em sua casa.
Enquanto saboreava aquela delícia, que neste ano veio com batatas inglesas pequenas, ovos de codorna, azeitonas roxas e cebolas minúsculas cozidas inteiras, não pude deixar de me lembrar como era o consumo e o uso do bacalhau na minha infância.
Naqueles anos da década de 1950, em Campina Grande, bacalhau era comida de pobre. Era barato, e quando não havia dinheiro para a carne do almoço, Mamãe mandava um de nós à mercearia da esquina para compra “uma quarta” de bacalhau. Um quarta significava 250 gramas e ela recomendava: “Diga a seu Fulano (o bodegueiro) que embrulhe bem embrulhadinho e venha embora logo.” Isso era para que nossa penúria não fosse denunciada à vizinhança pelo cheiro forte do bacalhau emanando do pequeno embrulho.
Chegando em casa, a “quarta” de bacalhau era “escaldada” várias vezes em água fervente para amolecer e tirar o sal; depois o peixe era frito no óleo e cada um ganhava um pedacinho pequeno daquela anti-iguaria salgadíssima, acompanhando o feijão-arroz-farinha desses tempos remediados, num milagre de multiplicação de pães e peixes que Mamãe era mestra em fazer.
Depois com o passar dos anos e a melhoria da nossa situação, o bacalhau passou a ser preparado de outra forma, mais rica e cheia de adereços. Lembro-me da monumental salada de bacalhau com ovo cozido cortado e grandes azeitonas; e do bacalhau com coco que papai gostava e que denunciava suas origens alagoanas.
Tudo isso me vem à mente agora, às cinco e meia da tarde, enquanto escrevo esse post, ainda jiboiando do opíparo almoço que comi na casa de Paula e Evandro.
Não comi chocolate ainda, mas isso é assunto para amanhã ou domingo.