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R & J de Shakespeare – Juventude Interrompida

Clotilde Tavares | 7 de maio de 2012

Sempre fico com um pé atrás quando saio de casa para ver qualquer espetáculo baseado em William Shakespeare. Isso porque a maioria dos encenadores nunca se contenta em apresentar o texto original, e somos obrigados a presenciar tentativas de tornar o texto mais “acessível”, mutilando a poesia, nivelando por baixo a linguagem, substituindo as belas e raras palavras pelo seu sinônimo mais corriqueiro, ou então “brincando” – no mau sentido – com o texto, recheando-o de palavras e situações obscenas, na velha postura adolescente de debochar daquilo que não se compreende. Também há outras formas de picotar, cortar, detonar e estraçalhar o texto a serviço de propostas de encenação esteticamente bizarras, e muitas experiências desse tipo recebem a aprovação de uma vertente modernosa da crítica, sendo esse aval tanto mais efetivo quanto mais esquisita for a montagem. A fragmentação do texto, sob a justificativa de se extrair dele “novos” e “ocultos” significados, principalmente se o texto for shakespeareano, tem sido um esporte praticado com energia e aplicação. Todas essas reflexões me fazem ir a uma montagem de W.Shakespeare com sentimentos que oscilam entre o terror e o tédio.

Para mim, nada substitui a força e a poesia do texto shakespeareano. Tenho provado ao longo dos meus anos com professora que qualquer adolescente de 16 anos pode não só compreender esse texto como retirar dele muito prazer estético. É uma sensação maravilhosa quando vejo um aluno descobrir que “o túmido astro que ergue o império de Netuno” é a Lua, e com essa compreensão, que passa primeiro pelo aprendizado de uma palavra nova, não-comum, “túmido”, depois por entender a influência da Lua sobre as marés, coisa que muitos não sabem, e finalmente quem é Netuno, e o que é a mitologia grega. Além de tudo isso, a viagem pela “linguagem ornamentada” usada por W.S. suscitou uma vez um diálogo interessante entre dois alunos a respeito da frase acima. Um deles perguntou: – “E por que ele não diz ‘a Lua’ logo de uma vez?” O outro, que estava ao lado, logo retrucou: – “Ô idiota, é a mesma coisa que o pavão deixar de ser colorido para ser em preto e branco!”

Pois é.

Então, quando fui ver “R & J de Shakespeare – Juventude Interrompida”, um texto do norte-americano Joe Calarco com direção de João Fonseca, na noite de 5 de maio de 2012 no Barracão Clowns, aqui em Natal, onde moro, fui preparada para tudo e nem li o programa entregue antes do espetáculo. Eu sabia apenas que eram quatro rapazes, que a montagem tinha vários prêmios e indicações, e só.

Mas foi tudo lindo, meu caro leitor. O que vi naquela noite foi uma prova de que é possível respeitar o texto e a dramaturgia shakespeariana e ao mesmo tempo envolver a platéia, formada quase que somente de jovens entre os 16 e 30. Havia ali umas cem pessoas, e somente eu da minha idade – mais de 60. Uma ou outra pessoa que aparentava ter mais de 35 anos e o resto eram jovens mesmo, universitários, gente de teatro, garotada.

O espetáculo funciona, e penso que funciona por vários fatores, reunidos pela competente direção. Tanto eu fiquei encantada quanto a jovem que, sentada à minha frente, recostava a cabeça do ombro do namorado. Provavelmente nos encantamos por motivos diferentes mas é esse o segredo de uma boa encenação, que tem a capacidade de levantar o véu que separa a nossa realidade comum e cotidiana daquele mundo inconsciente, estranho, caótico e desconhecido que temos dentro de nós. Todos viajam, cada um à sua maneira.

“R & J” se inicia propondo um nível duplo de representação ou de metamorfose: atores que fazem o papel de estudantes de um colégio católico que por sua vez fazem o papel dos personagens shakespearianos. Aqui e acolá, ao longo do espetáculo, eles voltam aos “alunos” com intervenções rápidas, bem humoradas mas rapidamente retornam a Romeu, Julieta, a Ama, Frei Lourenço. Esse texto sempre me arrebata quando é dito da forma como o foi, com verdade e fiel ao que foi escrito há mais de 400 anos. Os momentos onde os estudantes voltam a si mesmos também são dotados de um encanto, um frescor, uma juventude, uma beleza, qualidades que a peça pede, exige, e que não se encontra em todo tipo de ator. Mas são lindos, esses rapazes! São jovens, são suaves, são fortes, são saudáveis, são inteiros, “intocados pela tragédia”, como o eram Romeu e Julieta ao se conhecerem e experimentarem o amor.

Mas somente a beleza, a força, a juventude, não são suficientes para garantir um bom momento teatral. Esses rapazes são, principalmente, bons atores, bem preparados, com prontidão, vigor físico e fé cênica. Uma das coisas boas do espetáculo é a precisão, o cuidado com os detalhes, a movimentação perfeita, o bom-acabamento. Isso mostra ensaio, ralação, trampo, seriedade, compromisso, dedicação. Pablo Sanabio (como Frei Lourenço, Ama e outros) e Geraldo Rodrigues (como Julieta) estavam irrepreensíveis. O primeiro, nos papéis da Ama e de Frei Lourenço foi a melhor presença em cena, mas não de uma forma que desequilibrasse o conjunto – o que é bom. O segundo consegue o milagre de nos revelar Julieta sem apelar para a caricatura ou o travestismo. No entanto, tive dificuldade para entender o que dizia Felipe Lima (Pai de Julieta e outros) e quanto a João Gabriel Vasconcellos (Romeu) – como é bonito, esse rapaz! – foi um Romeu perfeito, embora nos minutos finais da peça – só nos minutos finais! – tenha ficado um pouco sem voz e cansado. Talvez não estivesse em uma noite boa. Acontece.

Muito competente a cenografia, usando elementos do ambiente escolar – carteiras, giz quadro-negro, papel A4, clipes (os brincos da ama, achado genial!) – aliada ao figurino: ternos e sapatos macios, o paletó usado de várias formas – saia, manto, pelo avesso – funcionou muito bem. E ficou tudo redondo, junto com a luz, a música e os efeitos sonoros. No Barracão Clowns estávamos em um arranjo rigorosamente elisabetano, com platéia dos três lados e uma profundidade maior do palco no quarto lado. Não sei se é essa a proposta real de distribuição do espaço cênico que eles usam em outros locais mas fiquei curiosa de ver como seria essa peça em um teatro de arquitetura convencional, com platéia frontal.

E como é bom desfrutar do encanto do texto de W.S. da forma como foi escrito, com todas aquelas metáforas espetaculares, as imagens poéticas, as palavras tão eternas e tão permanentes e ao mesmo tempo parecendo terem sido inventadas na hora pela verdade como são ditas! Na cena do balcão, como é sutil e delicada a forma de emissão do texto de João Gabriel Vasconcellos (Romeu) mas que nada seria sem a expressão amorosa do rosto e o olhar apaixonado que o personagem dedica à sua dama, no balcão, banhada pelo luar!

O que dizer mais? Somente que me agrada muito ver que ainda há espaço para a poesia em seu estado mais luminoso, despida de experimentalismos cênicos que a descaracterizam. Que a poesia ainda continua sendo capaz de arrebatar a mente e o coração de uma geração bombardeada a todo instante pelas vulgaridades de um milhão de views que lotam o Youtube. Que acreditar no amor ainda vale a pena. Que William Shakespeare continua imortal e tão moderno quanto eterno. Que o teatro continua vivo. E que, enquanto houver vida no teatro, a vida pode ser possível.

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