A preparação espiritual do ator
Clotilde Tavares | 25 de abril de 2010Hoje deixem-me falar sobre teatro. O teatro, arte onde milito há anos, ora como atriz, ora como dramaturga, ora com professora, é uma atividade absorvente e muitas vezes ingrata, principalmente quando perseguimos um resultado que pretende ser mais artístico do que comercial, quando buscamos mais a evolução estética da arte que praticamos do que uma gorda bilheteria e casas lotadas.
Por outro lado, como viver de teatro sem atender aos aspectos comerciais da arte? Como pagar o aluguel, a escola das crianças e a conta do supermercado sem vender ingressos? Artistas moram, comem, têm filhos, usam luz elétrica e água encanada. Parece óbvio, mas muita gente esquece disso e adora pedir uma cortesia para não pagar dez reais por um ingresso. Conciliar arte com mercado, eis o grande dilema de produtores, diretores e atores, que vivem tendo o palco como o centro pulsante e apaixonado de suas vidas.
Entre os vários problemas que o teatro nos coloca, está um, crucial nos dias de hoje, que é a formação do ator. O espaço aqui é pequeno para uma discussão dessas, mas é possível levantar alguns pontos. Sempre defendi, como pessoa de teatro, aquilo que chamo de preparação espiritual do ator.
Essa tal preparação “espiritual” não tem nada a ver com religião, mas com a elevação do espírito, do intelecto, das idéias, dessa parte imponderável do ser humano que extrapola as habilidades corporais desenvolvidas pelos exercícios, que hoje em dia são muitas vezes colocadas como os principais requisitos para o trabalho teatral. Essas técnicas são importantes mas ficam vazias e mecânicas se o ator não tiver esse desenvolvimento interno, do “espírito”, da sua essência enquanto ser humano.
Ler, pensar, trocar idéias, ver filmes, ver quadros, ouvir música, experimentar outros tipos de artes, experienciar a transcendência, a ampliação da consciência, praticar a felicidade, tocar um instrumento musical, observar a natureza e aprender com ela…
Mas tudo isso dá trabalho e a maioria dos jovens atores continua com um pé no palco e os olhos e o desejo na TV Globo, sem sequer ir ao cinema, quanto mais ler um livro! Aí fica aquela casca seca, dominando técnicas corporais, encostando o calcanhar na nuca, mas sem referências interiores para cumprir a tarefa do ator que é criar do nada, tendo como ponto de partida apenas as falas do texto, um personagem completo.
E é aí que reside a mágica desta arte. Criar um ser humano de verdade – de verdade enquanto a cena existe – dando-lhe alma, vida, energia, emoções, suor, sangue, lágrimas e risos! Quem poderia aspirar a uma tarefa mais empolgante do que esta? Um tarefa de deuses? E isso acontece todo dia no teatro, mas num teatro feito por pessoas que, além de músculos, ossos, tendões e ligamentos tenham também espírito, alma e essência.
Este post é dedicado aos participantes da oficina “Devorando Hamlet”, promovida pelo Núcleo dos Jovens Artistas, que ministrei de 19 a 23 deste, e que me afastou deste blog por uma semana. Comemoramos com esta oficina, como o faço anualmente, o aniversário de Mr. William Shakespeare.
Ola Clotilde,
Gostei muito do que escreveu..estava pesquisando pelo google informações “o que um ator precisa saber,ler,praticar,etc…”isso tudo
pois estou fazendo um curso de artes dramática
“tv e cinema”estou no primeiro semestre e já estou querendo me apronfundar mais,pois nessa fase começa as dúvidas do eu,e aonde eu quero botar para fora essa sensibilidade…me soltar das crenças e etc…e vc levantou todas as questões que estou a procura:quais livros começar a ler,o que me ajudaria para botar essa sensibilidade e tal…enfim…quero começar a buscar mais e não só ficar presa no ensinamento “TV” superficial…gostaria da sua ajuda e dicas para começar..meu e=mail:brunacps17@hotmail.com.
Se puder me ajudar vai ser ótimo.preciso de um guru..rsrsrs..
Bjss
8
Bruna
Eita! E depois dessa gentileza toda eu vou dizer o que? Obrigada, Múcia querida, com quem já dividi o palco na temporada 2003 do Esperando Godot aqui em Natal, onde ela fazia Wladimir e eu fazia Estragon. Foi uma grande experiência encenar Beckett ao lado desta talentosa atriz e querida companheira. “Didi, para você um beijo de Gogo.”
oi, clotilde, boa noite pra você. quero antes de tudo lhe dizer do prazer que tenho de lhe ouvir, de aprender com você e de quanto me divirto em sua companhia. fiquei sentindo uma falta danada depois do banquete encerrado, está faltando isso aqui em natal, a gente sentar e discutir as grandes obras. tive muita sorte de ter nascido no interior, ter conhecido a tv quando já conhecia os livros, ter um pai que adorava ler e que me apresentou o prazer da leitura desde criança, portanto, pra mim criar imagens a partir do que leio me é muito familiar. já fiz um trabalho com hamlet, que infelizmente não estreou por problemas de produção, coisa não muito rara na cidade do sol, mas a partir do nosso encontro compreendi e percebi nuances que antes não tinha percebido e que com a sua sabedoria me vieram à luz. já tive o prazer de trabalhar com você e sei da riqueza que é estar ao seu lado em cena, nosso godot foi uma experiência ímpar e que criou laços indestrutíveis entre nós. quanto a você, tião, é um prazer reaver seu contato precioso, não lhe encontro há tempos, mas tenho muito interesse pelo que você escreve e me perdi dos seus escritos desde a valsa. grande abraço a ambos, múcia.
Querida Katherine, seu comentário não chega atrasado, chega na hora certa e é sempre bem-vindo. Fico feliz de que mais atores e profissionais neste país estão começando a entender que para ser competente e feliz em qualquer área é preciso crescer como pessoa, crescer interiormente. Também gosto de aplicar aos meus trabalhos de teatro uma máxima que não me lembro quem disse mas acho que foi Peter Brook: “Nenhum espetáculo de teatro é mais importante do que as pessoas que trabalham nele”.
Sei que tá meio atrasado o comment, mas é que passei direto pelo twitter nesse dia (por Denize Barros) mas não podia deixar de opinar.
É muito bacana isso que vc falou e concordo plenamente pq recentemente , com a oportunidade rara de me enfiar em bastidores e de ficar, oficialmente, como “mosquinha de padaria”- esperando uma oportunidade de conseguir algo em gravações etc, – tive o registro fantástico do sentido que queria dar a minha arte, ou melhor , do quanto sentido queria dar, e percebi que assim estaria longe dessa arte que vemos hoje em dia que faz perguntarem de qual novela participo ou participei, quando digo que sou atriz.Esse registro me touxe leveza e felicidade, porque descobri que ser ator é assumir compromisso com a transformação de você mesmo e do mundo ao redor.É participar ativamente da construção do trabalho e pensar no que você está oferecendo e no que está recebendo como retorno e novas ferramentas de trabalho, o riso, a palavra de um espectador, as reações pela conexão profunda existente entre público e ator.
Com alguns amigos, após outros tipos de trabalho, fundamos a Cia teatral Humanizarte, que tem como objetivo, usar a arte como ferramenta de transformação e participação no mundo.Queremos antes de tudo , como atores sociais, buscar a consciência sobre nossa existencia.Cada trabalho deve ser uma construção conjunta, onde temos como aliada a reflexão prévia e posterior, o debate, a troca de experiência a colaboração de cada um como indvíduo e como ser único e insubstituível e assim vemos também o nosso público e esse é o nosso maior ganho e o que sempre buscamos.
enfim, adorei sua opinião.
Um grande abraço!
Katharine Akyer
Oi Tião! Fico feliz com seu comentário. Na verdade, precisamos de seres humanos melhores em todas as profissões e não somente na de ator.
O que você fala sobre a preparação espiritual do ator se aplica, hoje em dia, para muitas outras profissões: o que mais vemos são jornalistas, engenheiros, médicos, advogados e outros profissionais “na casca”, sem visão de mundo, de Brasil, do que se passa em outra parte do país, do que vai em outras dimensões da condição humana. Fora isso, dizer do prazer de rever Múcia na foto que ilustra o texto.