Beco da Quarentena: resistência cultural
Clotilde Tavares | 2 de maio de 2011
‘Então, o beco não mais termina em aspereza,
Amanhece puro, como de surpresa.”
Sanderson Negreiros
Ontem eu participei de um evento que me deixou alegre, cheia de energia e esperançosa em relação à força da cultura do povo natalense: a lavagem do beco da Quarentena.
O beco é uma travessa de uns 25 metros que comunica a rua Frei Miguelinho com a rua Chile. Eu gosto de dizer que o beco quase comunica o Centro Cultural DoSol com a Casa da Ribeira, sendo essas duas iniciativas os baluartes principais de resistência e vida do bairro naquele trecho. A prova disso é que ambas comemoram neste ano dez anos de atividade.
Mas voltando ao Beco, a história de dele pode ser lida no blog de Sandro Fortunato.
É um lugar cheio de lixo, imundo, enlameado, esburacado e soturno, por onde muita gente passa de dia para encurtar caminho mas de noite a história é outra e não é qualquer um que tem coragem de se aventurar na travessia.
Ontem, na grande festa que colocou todos os espaços da Ribeira funcionando e lotados de gente, o beco voltou à vida, ressuscitado e renovado por uma celebração poderosa, invadido por grupos de percussão e por artistas de todos os naipes. Vi por lá as mulheres do Rosa de Pedra, vi Danúbio do Pau&Lata, vi grupos de afoxé e seus mestres. Esse cortejo saiu do Buraco da Catita, arrastado pela vibe poderosa dos tambores; babalorixás cantavam suas melodias rituais e as divindades vieram todas nesse final de tarde, nos arrastando pela rua das Virgens, atravessando a Tavares de Lira, entrando na frei Miguelinho até a esquina do Beco, onde nos aguardavam os performáticos bailarinos da Companhia GiraDança.
Naquela hora, os tambores pararam e o canto em língua africana subiu aos céus, numa celebração linda, que arrastou não somente os artistas mas o público que estava também misturado com o cortejo. Quando eu vi aquele beco onde já se passou tanta tragédia, onde já reinou a imundície, a desordem, a prostituição, que é usado como banheiro público e onde os seres humanos no último estágio da degradação vão se drogar, pois bem, quando eu vi aquele espaço iluminado, banhado com água de cheiro e perfumado com talco, com o cântico poderoso e ancestral se elevando e trazendo as energias da Paz, da Arte, da Alegria e da Cordialidade, eu senti que algo novo está acontecendo nessa cidade.
O Beco da Quarentena a partir de agora deve ser tomado como um símbolo da resistência cultural em nossa cidade. Graças a nós, artistas e produtores culturais, aquele espaço vive e deve continuar vivendo. Foi bonito ver os natalenses, pela música e pela força do canto, da celebração e da alegria, recuperando um espaço que deve e pode ser nosso, a despeito da incompetência oficial.
É curioso que muita gente diga nos jornais, blogs e entrevistas que “é caótica a situação da cultura em Natal” ou “a prefeitura (ou o estado, ou qualquer uma das fundações culturais) está acabando com a cultura” ou “a cultura na cidade está se acabando”.
Eu afirmo exatamente o contrário. A cultura está aí, pujante e viva. Os artistas – músicos, compositores, artistas plásticos, escritores, bailarinos, atores e outros – estão aí, produzindo, trabalhando, levando o nome do Rio Grande do Norte para outros lugares, atravessando fronteiras. Temos teatro, dança, música, literatura e artes visuais em estado de permanente criação e produção, e isso tudo sem falar na cultura popular, porque os brincantes de todos os naipes continuam na ativa. O que se viu no Beco da Quarentena ontem foi uma prova.
Todo o Circuito Cultural da Ribeira é feito por pessoas como eu e você. É feito com a garra dos artistas/produtores que estão à frente do Centro Cultural DoSol e da Casa da Ribeira, contando com o patrocínio da Conexão Cultural Vivo. Tudo iniciativa privada, essa iniciativa que levou ontem para a Ribeira cerca de 10.000 pessoas, que por lá circularam, distribuindo-se por seus vários espaços, porque tinha programa para todos os gostos, desde peça infantil na Casa da Ribeira até o jazz no Buraco da Catita, passando pelo rock and roll no centro cultural DoSol. Tinha brechó, venda de livros e CDs, projeção de filmes e vídeos, e gente, muita gente bonita, circulando na paz, sem uma briga, sem uma arruaça.
O que vai mal, minha gente, não é a cultura: é a gestão pública na área cultural. O que vai mal é a chamada política cultural, ou a ausência dela. O que vai mal é a atitude dos governantes e gestores em relação à cultura: não sabem o que é, parece que não querem saber e, pior ainda, parece que têm raiva de quem sabe porque não colocam nos cargos as pessoas que realmente são da área e sabem o que estão fazendo.
A Cultura, como a Ribeira, é nossa. Não é do estado, nem do município. É da Cidade, e a Cidade somos nós: você que me lê agora, e eu que escrevo. Pense nisso.
EM TEMPO: Como não queria deixar passar a energia, fiz logo essa postagem, mas não tenho fotos do que aconteceu mesmo porque, no calor e ritmo do cortejo, não tive como fotografar o que acontecia. Mas prometo a você algumas fotos. Aguardem.
EM TEMPO 2: Tenho outro blog, A Noiva do Sol, onde posto somente temas locais, porque acho que tais temas não interessam a muita gente de outros lugares que visita este blog. Mas tem dias que – talvez por obscuros motivos wordpressianos – não consigo acessá-lo. Então hoje vai por aqui mesmo.
Apesar de todas essas tragédias…. violências e tristezas urbanas…. Me sinto feliz pelo resgate da nossa identidade….. Isso é muito forte….. O beco da quarentena , eu me atrevo a dizer…. É um patrimônio cultural que deve ser preservado e policiado… pois marca a nossa história, nossos antepassados…. E isso tudo tá vivo na memória daquele que quer resgates culturais….
Na verdade, não conhecia toda essa cultura, que é muito rica…. Não moro em Natal, moro em São José de Mipibu. município da mesma, e estou conhecendo agora a história dessa linda cidade….
Depois do circuito no domingo, na segunda em sala de aula na facul… meus colegas não acreditaram em minhas palavras… Que participei de um mini show de Rock, em um palco improvisado(lona), no histórico beco da quarentena…. cheguei no finalzinho, corri desde o início do beco, eu e minha galerinha…. ouvi apenas metade da última faixa… mas valeu e vou relembrar sempre….. Histórico…Amei!!!
Oi Fernanda, lamento o acontecido. Mas vamos colocar as coisas como elas são. Pedimos policiamento reforçado em toda as edições do circuito, e o que vimos foi um policiamento pífio para o número de pessoas que circulavam pela Ribeira.
Infelizmente não está em nosso poder resolver questões em que o poder público é que deve agir com rigor. Não nos é permitido por exemplo colocar seguanaça particular patrulhando as ruas, isso só é feito dentro de cada casa, que na real é onde temos algum tipo de gerência.
A insegurança infelizmente para todos nós não é um problema da Ribeira, é um problema de praticamente todos os bairros. Ontem fui comer no Subway de petrópolis, muito chique e tinham dois segurnaças gigasntes na porta porque eles não aguentam mais assaltos por lá.
Nossa ação do circuito é exatamentre para dar vida ao bairro, jogar luz sobre ele e não podemos ser responsabilizados por você ter sidfo assaltada na rua. É ao poder público que vc deve e precisa reclamar com vigor, nós estamos do mesmo lado.
Vamos juntos!
Oi Clotilde,
Ótimo texto, e ótima iniciativa a do Circuito Ribeira. No entanto, nem tudo é só poesia e beleza.
Pouco tempo depois da lavagem do Beco, saindo de uma peça na Casa da Ribeira (Gesto Cascudo) umas 21h30 mais ou menos, resolvi passar da Rua Frei Miguelinho para a Rua Chile. Pensei em aproveitar e ver como tinha ficado o Beco, já que não pude chegar mais cedo.
Estava realmente mais limpo, iluminado. Ainda assim, fomos (eu e um amigo) assaltados à mão armada (o assaltante estava com um revólver). Saldo da noite: 2 celulares a menos e um sentimento de tristeza em ver que ainda faltam coisas básicas para que o evento possa crescer ainda mais. Após o assalto, procuramos algum policial por perto e não encontramos nenhum.
Espero, numa próxima edição do Circuito Ribeira, que a segurança, ou melhor, a falta dela não seja um problema.