Essa menina
Clotilde Tavares | 6 de janeiro de 2018
ESSA MENINA
Com uns dois meses de vida, rolou pela cama de casal onde eu a tinha deixado adormecida, caiu pela borda sobre o tapete e depois rolou novamente para debaixo da cama, onde eu a encontrei meia hora depois, toda coberta de poeira e teias de aranha, dormindo sossegadamente. Isso depois de eu quase enlouquecer pensando que alguém tinha entrado no apartamento e levado ela embora.
Com uns quatro anos de idade, ao ser proibida de fazer alguma coisa, ficava emburrada, pegava uma sacola onde colocava a fralda, a chupeta e a boneca e resolvia: “Vou para o Recife morar com meu pai!” Um dia, irritada com o desaforo, chamei um táxi e a levei até o portão. “Pronto, chegou seu taxi. Pode ir para o Recife morar com seu pai.” Ela parou, considerou a enormidade da situação e resolveu rápido: “Agora não. Depois eu vou.” E nunca mais repetiu a bravata.
Aos cinco aprendeu a ler, mas não entendia o que lia. “Mamãe, o que é morto-a-cacetadas-no-bairro-das-Rocas?” Era o que a leitora precoce queria saber, com a Tribuna do Norte nas mãos.
Aos cinco também me deixou plantada na porta da escola no primeiro dia de aula. Entrou alegre e satisfeita, enquanto todas as crianças berravam, sem quererem se separar dos pais. Mas no dia seguinte, quando a acordei para ir à aula, me perguntou espantada: “Ah! E é pra ir todo dia?”
Aos oito, no colégio, foi a única menina a escolher a aula de judô em vez do ballet. A diretora mandou me chamar, achando que havia algo “errado” com ela. Mas não era nada demais: ela apenas queria fazer aula junto com o namorado…
Aos nove, ganhou a primeira mesada e emprestou o dinheiro à coleguinha de classe, a juros de 50% a semana.
Aos onze, ia comigo para o ensaio do teatro, na Stabanada. Depois de uns quatro ou cinco ensaios, só assistindo, decorou a peça inteira e ganhou um papel depois que uma desistência desfalcou o elenco. Estreou aos doze anos no palco do Teatro Alberto Maranhão e logo depois no Festival de Inverno de Campina Grande.
Dali em diante, os palcos viraram o seu lar, e o resto é história.
Texto publicado no Facebook em 4 de janeiro de 2018, no aniversário da minha filha Ana Morena Tavares.
Foto de Ana aos 9 meses por Gleide Selma.
<3 ahuahuauhuha adoro!