Faltou família
Clotilde Tavares | 10 de agosto de 2009Nas aléias ensombradas da Grécia Antiga, mestres e discípulos caminhavam juntos e conversavam, discutiam. A cada resposta dada pelo aluno, o mestre o remetia a nova problematização que gerava nova pergunta, e que suscitava outras perguntas, outras reflexões. Discípulo e mestre, envolvidos pelo suave ar da tarde e pelos temas discutidos, tornavam-se amigos, cúmplices, companheiros de aventura.
Conheci um rapaz, aprovado num dos cursos da UFRN, que se matriculava aleatoriamente em todas as disciplinas que pudesse cursar e que lhe interessassem, independentemente de serem ou não do seu curso. Quando alguém observava que desse jeito ele jamais iria se formar, respondia que isso não importava: ele gostava mesmo era de aprender coisas novas.
O escritor e critico Edson Nery da Fonseca diz que a sua idéia de Universidade é uma imensa biblioteca, onde os alunos lêem durante uma boa parte do tempo e depois voltam às salas de aula apenas para discutir as idéias suscitadas por essas leituras.
O pescador leva para o meio do oceano seu filho de oito anos, que o acompanha na pesca e, junto com o pai, fazendo e experimentando, aprende os segredos das ondas, dos cardumes, da direção do sol e dos ventos.
Volto no tempo e vejo os serões da minha infância. Papai, sentado na sala, ouvia rádio, e lia, interrompendo a leitura para ler um trecho para minha mãe em voz alta. Nós, crianças, fazíamos nossos deveres de casa, e Mamãe e Titia nos ensinavam. Havia tempo para isso e a TV não roubava a atenção de toda a família. Quando ficamos maiores, as noites eram animadas com jogos de palavras, adivinhações, recitativos, histórias. Toda noite recitávamos um soneto que havíamos decorado durante o dia e é assim que eu ainda hoje sou capaz de recitar horas a fio, porque aprendi na infância. Mamãe nos mandava fazer a conta para pagar ao leiteiro: um litro e meio por dia, a tantos cruzeiros o litro… e corríamos a pegar um lápis e um papel, para ver quem dava o resultado primeiro. E eram charadas, palavras cruzadas, logogrifos, consultas aos dicionários. Papai era charadista, e cedo nos iniciou nos mistérios da enigmística. Havia também um grande Atlas em casa, e papai nos mandava procurar as cidades no mapa. “Encontre… Adis-Abeba!” “Onde é isso, papai?” “No mapa da África.” E começava a competição para ver quem encontrava primeiro. Assim íamos aprendendo geografia.
Afastada da sala de aula desde 2002, quando me aposentei da docência universitária, continuo refletindo sobre o processo de ensino-aprendizagem, que foi meu “métier” durante quase trinta anos. A agenda das crianças é uma loucura, sobrecarregada de atividades extra-classe e sem tempo para brincar. As tarefas caseiras são feitas sempre com a televisão ligada porque a mãe ou o pai, quando está ali ensinando, não quer perder o episódio da novela ou do reality-show da hora. E os pais sempre se estão esperando mais da escola do que ela pode dar, mais do que ela tem a obrigação de dar.
Meus pais nunca delegaram à escola o compromisso de me educar. Eles me educaram em casa, e na escola eu fui aprender a conviver com crianças da minha idade, adquirir informações sobre temas que meus pais não dominavam e ter experiências relacionais que o espaço familiar não permitia. Mas educação, formação, essa foi doméstica mesmo.
Hoje, vemos adolescentes e jovens se comportarem como verdadeiros trogloditas nas praias, nas festas, na sociedade e também na escola, onde são selvagens, truculentos, agressivos e mal-educados. Os professores estão aterrorizados dentro das salas de aula, temendo processos e ações se levantarem a voz para os alunos; e as famílias continuam exigindo da escola o que não quiseram, não souberam ou não puderam dar em casa, quando deveriam, ou seja, desde a mais tenra, tenríssima idade de seus filhos; ou então vemos pais e mães acuados, cheios de culpa porque trabalham fora e tentando se compensar dessa culpa dando aos filhos tudo que eles pedem.
Técnicos e governantes vão para a TV dizer que a educação é a base de tudo, e etecetera e quás-quás-quás; e que as escolas precisam melhorar e que está na hora de investir mais em educação para que não faltem escolas.
Mas eu acho que não está faltando escola não. Está faltando família.