Fome
Clotilde Tavares | 27 de maio de 2014
Dormia sossegada debaixo de uma pedra. O sol me aquecia e eu estava tão profundamente mergulhada no sono que não percebi quando o escravo se aproximou e jogou sobre mim um cesto, onde fiquei presa. Cobriram-me com um pano e me levaram para longe. Fui ficando irritada, impaciente e com fome. Adormeci outra vez.
Quando acordei estava escuro ao meu redor, e pela trama do tecido que cobria o cesto não passava mais nenhuma luz. Devia ser noite. O cheiro de essências e de perfumes era forte. Pessoas cruzavam o aposento, que era grande, pois eu ouvia o eco de suas vozes nas paredes. Havia agitação e ansiedade no ar. Eu estava morta de fome, e comecei a me agitar, e a silvar. Minha língua estava seca.
De repente, tudo ficou calmo. Alguém pegou o cesto, tirou o pano de cima, e eu vi, pelas frestas da palha, a luz das tochas tremeluzindo nas colunas e iluminando as pinturas das altas paredes. Ah! Como eu gostava do lápis-lazúli, tão diferente do ocre monótono que sempre me cercava.
Uma mão fina de unhas negras e longas penetrou no cesto e me tomou com delicadeza, quase com carinho. A mulher bateu de leve as pestanas e me aninhou entre os seios. Senti o calor, o latejar da artéria e, inebriada com o almíscar daquela pele, cravei ali as presas e misturei minha saliva com o sangue doce da rainha.