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Consolar sempre

Clotilde Tavares | 14 de março de 2010

Se você tem lido o meu blog já sabe que andei viajando por esse mundo afora, fazendo pesquisas e descobertas sobre a minha genealogia. Descobri tanta coisa nova e interessante que acho que vou dedicar todo esse primeiro semestre do ano somente a consolidar todos esses dados e colocar no ar, atualizando O Clã Santa Cruz: Genealogia e História.

Viajei para Pernambuco no dia 2 de março e pretendia estar de volta somente no dia 16, ou seja, na próxima terça-feira, mas tive que voltar quatro dias antes, porque me deu uma dor na coluna desgramada de doente, um dor tão mulestada dos cachorros que eu achei melhor antecipar meu vôo e vir ficar doente em Natal onde tenho os filhos para me paparicar.

Desci do avião, deixei a bagagem em casa e parti para o Pronto Socorro, com essa dor infeliz, lancinante, que não me deixava nem sentar, nem deitar, nem ficar de pé, nem nada. Entrar no carro foi um sacrifício, pois doía a cada movimento e isso mesmo porque eu já tinha tomado uma alta dose de analgésico para aguentar a viagem de avião.

Pois bem: lá, no Pronto Socorro, um jovem médico me atendeu. Uns 25 a 30 anos, lindo, um rapaz lindo, e mais lindo ainda no seu jaleco branco, figurino que está na moda e na fantasia dos brasileiros por obra e graça da novela das oito, com seu galã médico e seus colegas igualmente médicos e bonitões.

Mas o que esse rapaz que me atendeu tinha de beleza, tinha de antipatia. Não fez contato visual comigo na maior parte da consulta, e durante o tempo em que me olhou, encarou-me com enfado, impaciência e pouco caso. Desconsiderou minha descrição do que eu sentia – ora, quem melhor do que eu sabe o que estou sentindo? – fez um exame físico superficial e prescreveu um analgésico potente – esse sim, fez efeito! – entregando-me ao enfermeiro para aplicar o soro. Tenho certeza de que se esqueceu de mim no mesmo instante.

Não sei se você que me lê agora sabe disso, mas também sou formada em Medicina, tendo praticado durante 20 anos. Trabalhei muito em Pronto Socorro, atendendo o ser humano nas suas horas mais extremas, mais dolorosas, em que estavam mais fragilizados, quando chegavam poli-traumatizados, baleados, esfaqueados, em choque anafilático, envenenados ou em overdose de álcool e outras drogas, enfartados, desidratados, gritando com cólica renal, vomitando ou em choque por abdome agudo, em estado de mal asmático ou de mal epiléptico, ou, como cheguei ontem na urgência, tronchos e desesperados por uma dor na coluna.

Nos Postos de Saúde da Família a minha prática era com Pediatria, Puericultura e Pré-Natal. As mães que ali acorriam, de baixa renda, traziam seus filhos com diarréia e desidratação, bronquite, pneumonia, parasitoses, e a doença de todos: a fome, a desnutrição.

Hipócrates

Com todos esses meus diversificados pacientes, ao longo desses vinte anos de Prática Médica, tive sempre como base o aforisma de Hipócrates, que aprendi dos meus mestres na Faculdade de Medicina da UFRN:

… Curar algumas vezes, aliviar muitas vezes e consolar sempre.

Tenho a consciência do meu dever cumprido durante o tempo em que pratiquei a Medicina. Nunca me deixei levar pela vaidade, achando que curava. Sempre acreditei o que paciente ele mesmo se cura, mobilizando suas forças interiores, muitas vezes sem ajuda do médico; aliviei sempre que pude e nunca nunca nunca deixei ir embora qualquer paciente sem o consolo, sem a escuta atenta das suas pequenas ou grandes queixas, sem o olhar compreensivo e o gesto de carinho que eu traduzia nos diagramas que fazia para explicar-lhes suas doenças ou nas receitas com letra redonda e bem legível para as minhas pacientes da favela, que mal sabiam ler.

Nunca deixei que meu cansaço, meus problemas pessoais ou qualquer outro tipo de interferência prejudicasse o contato com aquele que, em sofrimento, me procurava.

Hoje sou escritora, pesquisadora, fiscal da Natureza, ou como queiram chamar a minha vida de aposentada. Não sou mais Médica, uma vez que não pratico mais. Mas já fui, Médica, com “M” maiúsculo. Já o profissional que me atendeu, pode até ter o diploma pendurado na parede, mas, para se tornar Médico ainda precisa aprender muita coisa.

Não cito nome do profissional nem o hospital onde ocorreu o atendimento. Por muito menos do que isso, outros blogueiros estão sendo processados.Também não reproduzirei nos comentários que porventura aqui chegarem nomes de profissionais ou instituições. Isso também tem gerado processos para os blogueiros, mesmo sendo os comentários assinados por outras pessoas.

Estou melhor da dor. Nesta segunda-feira, saio em busca de um Reumatologista. Desejem-me sorte.

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aforisma, hipócrates, juramento de hipócrates, medicina pronto socorro, paciente
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O fim do mundo

Clotilde Tavares | 11 de março de 2010

Estou no Recife, meu caro leitor. E toda vez que entro em um táxi, e falo que moro em Natal, o motorista me pergunta se na capital do Rio Grande do Norte também está quente assim. E eu respondo que sim, que está quente em todo lugar. Sol escaldante, asfalto abrasador, brisa – quando tem – fervente, um verdadeiro forno de microondas é no que se transformou o mundo nesses últimos dias.

Imagine você que eu andei no Agreste de Pernambuco na semana passada, mais precisamente em Garanhuns; e em Garanhuns, na chamada Suíça Nordestina, famosa por suas temperaturas amenas, o termômetro andou marcando 33 graus centígrados. De noite, ainda aparece aquela aragem fresca e a gente pensa que finalmente vamos ter um refresco, e que Deus finalmente ligou o ar condicionado central: ledo engano. As madrugadas são quentes, e a gente acorda banhado em suor, se abanando, em busca dos ventiladores e das janelas abertas.

No Recife o povo está com medo dos terremotos, porque tremores abalaram a região de São Caetano, Caruaru e municípios próximos. É muita gente falando em vender o que tem e se mudar para algum lugar mais seguro, onde o chão não se abale com qualquer besteira. Na capital pernambucana ainda reina o medo do tsunami, pois algumas áreas da cidade se encontram abaixo do nível do mar, é o que dizem todos.

Eu só sei que estou com um medo danado do fim do mundo. É terremoto, é maremoto, é enchente, é tsunami… Já pensei até em me mudar para o interior, para o cocoruto de uma serra qualquer, lá nas quebradas do Cariri Paraibano, perto de Coxixola, terra dos meus ancestrais. De lá de cima eu veria a grande onda chegar trazendo finalmente a praia para Campina Grande mesmo à custa de muita destruição e vidas perdidas.

Mas não vou não. Não vou não porque meus filhos, meus netos e meus amigos não querem ir junto comigo. E de que adianta ficar sã e salva em cima de uma serra mas sozinha, sem ter junto de mim as pessoas que eu amo?

Vou ficar na cidade mesmo, para o que der e vier, Para a vida ou para a morte, para o tsunami e o terremoto. Vou ficar onde estou e estive sempre, com os meus, vendo o Sol nascer e se por, e depois a Lua, vendo o vento balançar a folha da palmeira e as primeiras estrelas surgirem quando a noite chega. E se o fim do mundo vier, pode vir, que já estou em paz, satisfeita, e já fiz na minha vida tudo o que quis fazer.

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fim do mundo, terremoto, tsunami
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História de cangaceiros

Clotilde Tavares | 7 de março de 2010

Vicente Lucas se preparava para descarregar a mercadoria dos jumentos em frente ao armazém. A mulher, Josepha, em estado adiantado de gravidez, viu ao longe uma tropa de homens fortemente armados, que se aproximavam.

– Olha, Vicente, quanto soldado!

– Larga de ser tola, Zefinha! – disse o marido. – O que é que os soldados vinham fazer num fim de mundo desses?

Mas era Lampião e seu bando. Cangaceiros e volante em nada se distinguiam uns dos outros, nem nas roupas, nem nos armamentos e muito menos na ferocidade. E de repente estavam todos dentro da casa de comércio, de onde passaram à residência, contígua ao armazém.

Com a coronha dos rifles arrombavam portas, quebravam tudo, procurando dinheiro e jóias.

A mulher gritava enquanto o marido era espancado pelos cangaceiros para revelar o esconderijo dos bens. No oratório, dentro de uma lata vazia de doce, os trancelins e anéis de Josepha foram logo encontrados. Os bandidos queriam mais e continuaram o espancamento.

Vendo o marido mergulhado numa poça de sangue, ainda apanhando, Josepha só pensava nos filhos pequenos que, à aproximação do bando, haviam fugido pelos fundos da casa mergulhando nos matos, onde o menino Gerson, de poucos anos, só não morreu de sede porque foi alimentado pelos irmãos com água de raiz de umbuzeiro.

Depois de depredarem tudo, com Vicente já morto, um dos cangaceiros atirou em Josepha, que lhe pedia pelo amor de Deus que tivesse pena dela, que pensasse na criança que estava para nascer.

– Bandida! Cachorra! – vociferou o animal, disparando-lhe um tiro de rifle.

Errou o tiro. A bala alojou-se no bauzinho de couro onde estava guardado o enxoval da pequena Angelita, nascida meses depois, e falecida ainda muito novinha.

Entre risadas, com os embornais repletos do saque, os bandidos se prepararam para deixar o local. Um menino adotivo, cria da casa, foi amarrado à cauda da montaria de um deles por uma peça de tecido retirada do armazém e arrastado por algumas centenas de metros onde foi deixado, semimorto, à beira da estrada.

Tudo isso se passou em 1924, aqui neste Agreste pernambucano, e me foi contado hoje por Didi, minha prima, neta de Josepha e de Vicente.

Páginas do passado, heróicas, tristes, e verdadeiras.

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Memória
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cangaceiros, Lampião
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Beleza em estado puro

Clotilde Tavares | 6 de março de 2010

É tão lindo esse país, meu caro leitor!

Eu sou uma apaixonada por essa terra e considero que não é preciso ir aos pontos turísticos para ver grandes belezas. Sou uma apaixonada da beleza singela das regiões interioranas, com suas cidadezinhas pequenas e esquecidas pelo tempo aparecendo a cada 20 ou 30 km, com a igreja no centro, os prédios e casas antigas ao redor, em volta da pracinha, e um pouco mais longe, em linha reta, a estação de trem. Num alto próximo, o pequeno cemitério, com suas construções brancas e azul claras, “que duram até o juízo final” como está lá no Hamlet, Ato V, Cena 1.

A topografia do Agreste de Pernambuco, por onde tenho andado nestes dias, mostra morros suaves e arredondados, céu de lápis-lazúli, verdes de todas as cores de verde que você possa imaginar, visões bucólicas que lembram a Toscana italiana, com panoramas que mudam e fascinam a cada volta da estrada.

Uma coisa tão bonitinha que só vendo.

Por isso, lhe deixo com as imagens.

Lago com direito a patos,

Paisagem de lago com patinhos.

Força viva que brota da terra e se estende para o alto.

Morros verdinhos e macios, que dá vontade de passar a mão...

A esperança, que sempre está comigo e que também me acompanhou nesta viagem.

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Agreste de Pernambuco, cidade do interior, Hamlet, turismo
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On the road

Clotilde Tavares | 4 de março de 2010

Pense num calor escaldante, sol abrasador, estradas medievais serpenteando entre morros onde só passa um carro de cada vez, natureza deslumbrante em seus milhares de verdes diferentes um do outro, a cada curva uma paisagem mais linda do que a outra.

É o Agreste de Pernambuco, através do qual rodei hoje uns 200 quilômetros, indo de Angelim a Viçosa das Alagoas, passando por Palmeirinha, Correntes e Poço Comprido. E depois voltando para Angelim, morta de calor e fome, às três horas da tarde, com o corpo desconjuntado de sacolejar na buraqueira. E feliz, absolutamente feliz.

Em busca de gente que já virou pó há muito tempo, não encontrei mais nada, nem as catacumbas – é, meus amigos, boa parte do meu dia foi passado nos cemitérios dessas cidades, encarnando a minha personagem preferida: a Caçadora do Túmulo Perdido.

Isso me levou a sérias reflexões. Os casarões e palacetes que esse povo habitou não mais existem; nem o pó dos ossos existe mais. O que sobrou? O registro escrito de suas palavras e obras. É isso que é eterno.

E com isso e algumas imagens, me despeço por hoje.

Viçosa das Alagoas. Destaca-se a torre azulzinha da igreja. Ao lado o rio Paraíba no seu leito pedregoso.

Igreja de Correntes, em Pernambuco.

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Sangue do meu sangue, eu mesma

Clotilde Tavares | 3 de março de 2010

Ontem andei aqui falando que estou viajando, realizando uma pesquisa de genealogia, pesquisando meus antepassados, no desejo de saber quem são, de onde vieram, o que faziam.

Batistério de Cleuza, minha mãe. 1921.

Descobri que a genealogia é também uma ocupação muito saudável para as damas aposentadas feito eu, que perderam o gosto pela farra e pela esbórnia (talvez em virtude dos excessos que já praticaram) e que não tendo mais maridos, filhos, cargos e empregos para se dedicar, procuram algo para encher o tempo.

A genealogia tem me levado a viajar, conhecer pessoas, encontrar parentes que eu nem sabia que existiam.

O curioso é que quando eu digo às pessoas que estou procurando meus antepassados, logo perguntam se encontrei algum conde ou barão; ou se sou descendente de algum nobre florentino ou fidalgo espanhol. E quando eu digo que sou da família Santa Cruz querem logo saber se sou parente de um comediante que aparecia na TV fazendo pequenos papéis em programas cômicos. Mas é isso mesmo, vivemos numa sociedade onde o que vale é a fama e a notoriedade, mediadas pela TV.

Alguns dos meus antepassados, de sobrenome Salgado de Vasconcelos, foram agricultores e criadores de gado, mascates e tropeiros. Havia ainda os Santa Cruz, que eram bacharéis. fazendeiros e políticos, e um deles quase virou cangaceiro, à frente de um “exército” de cerca de 400 homens, somente porque se indispôs com os políticos que estavam no poder. Isso foi em 1912, em Monteiro/PB e a história é contada por Pedro Nunes no seu espetacular livro “Guerreiro Togado”. Uma versão resumida você pode ler aqui. Tudo isso é do lado da mminha mãe, onde ainda há ramos que não pesquisei como os Duarte, de Canhotinho/PE e os Ferreira, de Flores e Sertãnia, também em Pernambuco.

Os Tavares, do lado do meu pai, eram jornalistas, intelectuais, mas nenhum deles famoso: socialistas, viviam dando com os costados na cadeia sempre que havia uma escaramuça política qualquer.

Tenho muito orgulho do meu povo, e das histórias que descubro sobre eles. Mas ainda há muito o que pesquisar. Se você imaginar que temos dois pais, quatro avós, oito bisavós, dezesseis trisavós, trinta e dois tetravós e assim por diante, vai entender porque o assunto é tão apaixonante.

Eu consegui chegar modestamente a sete bisavós, quatro trisavós e dois tetravós; a caminhada apenas começou. Conseguir encontrar todos os trinta e dois tetravós é quase impossível, principalmente porque a maioria era gente pobre, modesta, sobre quem não ficou nada escrito. Mas a graça da aventura está exatamente aí.

O que sei é que todos vivem dentro de mim, impressos no meu DNA, e que sou essa amálgama de mascates, bacharéis, caboclos brabos, tropeiros, jornalistas, agricultores, fazendeiros, comunistas, sesmeiros, bandidos e coronéis. Sangue do meu sangue, eu mesma, Clotilde Santa Cruz Tavares.

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genealogia, Guerreiro Togado, Santa Cruz
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Viajar é preciso

Clotilde Tavares | 2 de março de 2010

Estou em viagem, meu caro leitor. Hoje, no início da tarde, parti para o Recife, onde estou agora; amanhã parto para o Agreste de Pernambuco, mais precisamente Garanhuns, Angelim, Correntes, Canhotinho e Viçosa – esta já em Alagoas – onde vou dar continuidade à pesquisa que já venho fazendo há tempos sobre os meus antepassados.

Oriundos da cidade de Correntes, os Santa Cruz se espalharam: um ramo para Monteiro-PB, de onde deu ramos para a Paraíba e Recife; outro ficou por lá mesmo Pernambuco e radicou-se na cidade de Angelim-PE onde trocou de sobrenome e deu origem aos inúmeros Salgado e Calado que de lá se espalharam pelo estado. Outro ramo ainda subiu ao Amazonas e de lá veio ao Rio de Janeiro; e mais um outro deixou descendentes ainda radicados em Pernambuco.

É em busca dessas origens que estou. É em busca das histórias desses homens e dessas mulheres que se radicaram naquelas terras de antanho, onde não havia nada, e do que construíram sobre aquele chão. Habitaram, casaram, tiveram filhos e netos, compraram, venderam, viveram. Eu quero saber que histórias foram essas.

Por isso, vai ter dias em que eu não vou responder nem emails nem comentários e não vou poder postar.

A história – o pedaço que já está escrito – você pode ler aqui.

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Brincando de pobre

Clotilde Tavares | 26 de fevereiro de 2010

Hoje, trafegando pela Avenida Engenheiro Roberto Freire (para quem não mora em Natal, é uma das principais avenidas da cidade, que dá acesso à praia de Ponta Negra) fechei logo  o vidro do carro e fechei a cara, esperando o sinal abrir para que eu pudesse continuar sem ter contato com eles. Não adiantou. Dois deles, sujos, descalços, sem camisa, maiores do que eu e chegando mais perto do carro do que eu gostaria, bateram no vidro:

“Tia, tem um trocadinho aí?”

“Eu não sou tia de vocês”, respondi. “Se fosse, vocês não estariam se submetendo a esse papel ridículo e desrespeitoso com quem realmente precisa pedir esmolas para viver.”

Pois é, meu caro leitor. Os universitários “em trote” atacam novamente. Rapazes e moças, recém-aprovados no vestibular, estão espalhados pelos semáforos da Zona Sul a pedir uma “esmolinha”. Para isso, os colegas os despojam dos sapatos, os rapazes ficam sem camisa e todos têm os rostos e os braços sujos de tinta. Ombro a ombro com os pobres de verdade, que ali estão para limpar os parabrisas dos carros ou pedir esmolas, esses filhos da abundância riem, divertem-se e parecem estar tirando muito prazer da brincadeira.

Acredito que o fato se repita por muitas capitais brasileiras e já escrevi muito sobre isso, quando tinha coluna fixa nos jornais de Natal. Sempre critiquei essa atitude, esse “trote” de mau-gosto, essa falta de caridade com aqueles que precisam pedir de verdade. Causa-me espanto a naturalidade com que quase todo mundo encara uma coisa dessas. Causa-me espanto os pais desses jovens não se tocarem da crueldade da atitude deles, do acinte que ela representa frente àquelas pessoas que estão ali, lutando pela sobrevivência.

Será que os organizadores desses “trotes” não conseguem pensar em algo mais criativo? Se não querem doar sangue nem empregar parte do seu tempo em uma atividade comunitária qualquer, por que não realizam uma atividade artística ou cultural dentro da própria universidade? Se o espírito do trote é expor os calouros a uma situação vexatória, porque não os colocam para cantar, dançar ou representar, mesmo que não saibam fazer isso direito? Ou por que não pedem esmolas dentro do próprio recinto da universidade, onde os pobres de verdade não podem entrar?

Lembro-me dos trotes universitários em Campina Grande, na época pré-1964, onde era organizado um grande desfile pela cidade com críticas ao governo e às autoridades. Cartazes, faixas, estudantes fantasiados, tudo servia. Os “feras” eram conduzidos amarrados, dentro de um cercado, sujos e maltrapilhos. O desfile era cheio de criatividade, com paradas para apresentação de sketches teatrais e a cidade parava para vê-lo. Depois, a ditadura militar acabou com a farra e quando veio a abertura o costume não foi retomado. Nos últimos anos o que se vê nos trotes é isso: mau-gosto, grosseria e, em alguns casos, como já aconteceu em outras cidades, grandes orgias terminando em morte.

Sei que quem organiza esse tipo de brincadeira não é leitor deste blog. Mas quero mesmo assim sugerir duas opções como alternativa para a “brincadeira de pobre”.

A primeira é que cada um desses jovens leve um pobre de verdade para “brincar de rico” pelo menos por um dia. Banho, roupa nova, uma volta no shopping, umas comprinhas, um cinema, uma volta de carro pela orla…

A segunda opção é a que me agrada mais, embora seja mais radical: pegar cada um desses mocinhos bonitos ou patricinhas deslumbradas que estão brincando de pobre, tirar deles o celular, o dinheiro, os documentos e a chave do carro e soltá-los numa favela, às dez horas da noite, pra ver eles se virarem em outro ambiente que não seja o deles.

Mas sei que de nada adianta tudo isso, caro leitor. Sempre que houver vestibular, vamos ter que apelar para a paciência e conviver com isso. Há alguns anos, quando comecei a observar esse fenômeno, eu ficava preocupada porque sentia que aquelas criaturas sem noção iriam estar futuramente ocupando cargos no poder, atuando na política, dirigindo as universidades, julgando nas cortes, dirigindo os hospitais, e – pior, muito pior – nas salas de aulas ensinando aos nossos filhos e netos.

Hoje, esse triste futuro já se tornou realidade e basta você observar direitinho as pessoas que estão em destaque no seu município ou estado, principalmente aqueles que estão na faixa dos 30 a 40 anos, para constatar que muito deles são os “sem-noção” que há dez anos pediam esmola nos sinais.

Quanto aos pobres de verdade, continuam lá, nos sinais, pedindo esmola o ano todo. E isso não é nenhuma brincadeira.

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O tema é o design

Clotilde Tavares | 25 de fevereiro de 2010

Para se divertir, recorde alguns dos meus posts “temáticos”. É só clicar nos temas.

Camas

Sapatos

Banheiros

Poltronas

Ventiladores

Telefones

Escrivaninhas

Bikes

Banheiras

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"Self-self"

Clotilde Tavares | 24 de fevereiro de 2010

Volta e meia estou aqui de novo falando sobre as palavras, porque elas são para mim a coisa mais preciosa que existe. As palavras são meu ganha-pão, minha diversão, meu roçado, meu video-game, minha glória e a minha agonia. Tudo que faço, faço em torno delas e, para mim, seria o caos se eu não pudesse mais lidar com elas, de uma forma ou de outra. Sempre serei feliz se puder ler; se não puder ler, se não tiver livros, um lápis e um papel para escrever preencherão todos os meus desejos. E sem nem isso me for dado, tenho o juízo para inventar histórias e escrevê-las mentalmente, como o faziam e fazem os poetas populares da minha terra nordestina. E, finalmente, posso recitar mentalmente tudo que sei decorado, por horas e horas, para me distrair, como meu pai fazia depois que a velhice destruiu toda sua capacidade de ler e escrever.

Pois bem: sobre palavras, muitas vezes vejo coisas curiosas sobre a forma das pessoas se expressarem, principalmente aqueles que não fazem parte dessa nossa cultura letrada, aqueles que vivem e trabalham na área da oralidade. Num mundo oral, de comunicações não-escritas, quando se precisa escrever alguma coisa vemos coisas engraçadas e curiosas, mas também profundamente tocantes e enternecedoras.

“Seelf serfe 5,00 reais, com direito a 2 pedaço de carne outro pedaço 0,80”; “Ceja bemvindo e esprimente a lingüiça”; “Fexe o portão”, são frases que eu entendo, você entende e qualquer um entende mas que não se adequam à norma culta adotada e aceita pela cultura oficial. São pessoas comuns, pessoas do povo, tentando se incluir num meio onde o boca-a-boca não funciona mais e é preciso avisar à clientela os detalhes do negócio.

Antes não precisava de cartaz, não precisava de nada disso. O camarada chegava na bodega da esquina, onde, conversa vai, conversa vem, se falava que lá em Maria de seu Zé de Quinca tinha uma galinha torrada de dar água na boca. E era cada prato de comida que dava pra comer três pessoas. O freguês ia, pedia, Dona Maria trazia a galinha com todos os acompanhamentos e o trabalho era somente deliciar-se com a iguaria.

Mas os temos mudaram e veio a comida no peso, o auto-atendimento, o famoso “self-self”, como já vi escrito também em outro lugar. E as pessoas precisam se incluir nesse mundo mágico e misterioso dos letreiros e cartazes, complicado pelas palavras em língua estrangeira que permeiam nosso cotidiano. O cara que anuncia no balcão da lanchonete “We speak inglish” está se adaptando aos novos tempos, à penetração cada vez maior do turismo, e provavelmente fala inglês mesmo, e bem, e consegue se comunicar com os estrangeiros apesar de não dominar a língua escrita.

Fazer o quê? É isso mesmo. Devagarinho, devagarinho, as coisas se equilibram, uns aprendem a escrever em inglês, outros colocam um anúncio “Sirva-se você mesmo”, que é uma tradução tão brasileira quanto adequada do “self-service”. Outros anunciam “almoço no peso”. E se for mesmo dona Maria quem estiver pilotando o fogão, o prazer gastronômico é garantido porque talento não tem idioma nem nacionalidade.

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