Deus, e o acaso
Clotilde Tavares | 11 de abril de 2010Eu sou uma mulher feliz.
Digo isso porque, em plena crise de criação, com os canais escrevinhadores totalmente obstruídos sabe-se lá porque, uma preguiça pré-histórica de emendar uma frase na outra, posso dispor de mais de duas mil crônicas do meu irmão Braulio Tavares para reproduzir aqui enquanto eu mesma não volto a produzir as minhas. Segue abaixo esta, publicada em 30 de março no Jornal da Paraíba, onde ele escreve. E todas – ou a maioria delas – estão no blog dele, o Mundo Fantasmo.
O destino indireto
Braulio Tavares
O escritor Alberto Mussa conta que quando fazia um curso universitário de Matemática usou, ao pagar as cadeiras de Cálculo, um livro-texto diferente do que seus colegas usavam. O autor do livro era um russo, um tal de Piskounov ou coisa parecida, diz ele. Espalhou-se na faculdade a notícia de que ele estudava no livro de um autor russo (era a época da ditadura) e isso imediatamente lhe conquistou um enorme prestígio entre seus colegas comunistas. Um deles deu-lhe de presente um livro de poemas de Agostinho Neto, o presidente comunista de Angola – e a vida de Mussa mudou para sempre. Não que ele tivesse virado comunista, mas foi através do poeta angolano que ele descobriu a cultura e a literatura da África, sobre as quais viria a escrever numerosas obras.
Vilma Guimarães Rosa conta no livro “Relembramentos” que sua tia Maria Luiza, quando jovem, precisava dar mamadeira a um sobrinho, mas não tinha relógio e estava sozinha com o bebê em casa. Para perguntar as horas a alguém confiável, ligou para um número que viu na lista, e que imaginou pertencer a uma entidade religiosa. Não era: era uma pensão de estudantes. Um rapaz atendeu, os dois começaram uma conversa, depois um namoro, e acabaram casados pelo resto da vida.
São mil histórias; cada um de nós sabe várias. É a moça que acompanha a amiga a um estúdio, onde a amiga vai gravar alguma coisa, e alguém lhe pede que faça um teste ao microfone, ela canta e vira mais cantora que a amiga. É o rapaz que vai se matricular na Faculdade, vê uma moça bonita se matriculando noutro curso e, num impulso, matricula-se ali sem outro interesse, e vira um luminar daquela ciência.
Luís Buñuel nunca tinha pisado no México. Estava meio exilado e desempregado em Hollywood quando em 1946 recebeu um recado de uma amiga, no México, chamando-o para produzirem juntos uma peça. Don Luís foi para lá.. No hotel, ficou sabendo que a peça que tinham em mente fora liberada para outro produtor. Buñuel ficou no México até morrer, e realizou ali 20 filmes.
É o que eu sempre digo: “Sorte não é sonhar avestruz, jogar avestruz, e dar avestruz. Sorte é sonhar avestruz, jogar camelo por engano, e dar camelo”. Em tudo que tem interferências do Acaso a gente percebe o lado aleatório da coisa, mas percebe também (ou está ansioso para perceber) a presença de um enorme Dedo empurrando os personagenzinhos nesta direção, depois naquela… Luís Buñuel tem uma afirmativa terrível: “O Acaso não pode ser uma criação de Deus, já que ele é a negação de Deus. Estes dois termos são antinômicos, excluem-se um ao outro”. Escutaram, amigos, mil catedrais desabando? O contrário de Deus não é o Diabo, que é feito da mesma essência dele e no máximo encarna o seu pólo oposto. Deus é criação, controle, onisciência, determinismo, ordem; é isto, e tudo que combinar com isto. O contrário de Deus é o Acaso. Se pudermos um dia provar a existência do Acaso provaremos a inexistência de Deus.