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A botija

Clotilde Tavares | 26 de dezembro de 2009

Câmara Cascudo. 1898-1986.

Diz Luís da Câmara Cascudo que o tesouro enterrado é um mito presente em quase todas as culturas e que no Nordeste recebe o nome de “botija”: “… ouro em moedas, barras de ouro ou de prata, deixados pelo holandês ou escondido pelos ricos, no milenar e universal costume de evitar o furto ou os ladrões.” (Dicionário do Folclore Brasileiro)

Riquíssimo é o conjunto de superstições e crenças que envolvem o assunto na nossa cultura. Primeiro vem o sonho. Sonha-se com o tesouro, que muitas vezes é indicado por almas penadas, seres do outro mundo condenados a sofrer nas chamas do Inferno enquanto  o ouro escondido em vida não for encontrado. Parte dele deverá se destinar a missas pelo defunto e o resto fica para o herói que, afrontando os perigos de empresa tão arriscada, desenterra o ouro.

Fui criada ouvindo histórias de botija. Aprendi com os mais velhos e recordo hoje na leitura de Cascudo que para desenterrar uma botija é preciso obedecer a certas regras. É preciso ir à noite, sozinho, sem falar com ninguém e em silêncio. Se contar a outra pessoa, o tesouro some. Se outra pessoa for pegar a botija sonhada por alguém, não encontra nada. Quando muito, uma panela de carvão em lugar do tão cobiçado ouro. E é preciso traçar um “sino salomão” (um signo de Salomão, a estrela de seis pontas) no chão, antes de começar a cavar.

Na cidade de Cerro Corá, onde estive em 1999, ouvi uma historia de botija. Passou-se na Fazenda Tupã, que era propriedade de Sérvulo Pereira, magnata daquela região e dono de minas de ouro, e que hoje pertence a seus descendentes. Um rapaz que trabalhava lá começou a sonhar com uma “bola de ouro” que estaria enterrada em determinado lugar da casa sede da fazenda. Contou a um, contou a outro, mas ninguém deu crédito à história, e parece que nem ele mesmo estava acreditando muito. Aí ele foi morar em Natal, mas o sonho não parou de persegui-lo até que, no final de 1998, foi lá no local indicado pelo sonho e arrancou a botija. Um buraco entre a parede e o piso, na parte anterior da casa, foi somente o que encontraram na manhã seguinte. Ouvi a história e fotografei o buraco quando andei por aquelas paragens em 1998.

Meu pai contava a história de um homem que vivia numa fazenda em Minas Gerais e sonhava com uma botija enterrada em uma casa na rua da Imperatriz, no Recife, cidade à qual ele jamais tinha ido. Um dia, esse homem resolveu sair de onde morava e empreender a busca do tesouro. Foram muitas peripécias e um final inusitado, e essa história me impressionou tanto, ecoou tanto dentro da minha cabeça durante tanto tempo que eu resolvi contá-la em livro. Misturei com outras histórias também da minha infância e daí resultou um livro, “A Botija”, que ganhou em 2000 o Prêmio Câmara Cascudo de Literatura, que é o prêmio da Prefeitura Municipal do Natal. Editado pela editora 34 em 2006, o livro é muito bem aceito e está sendo adotado como leitura obrigatória do vestibular de 2011 da Universidade Federal de Campina Grande.

Um tesouro de histórias, arrancado do profundo solo da minha infância: é esta botija, brilhando como ouro nas noites da imaginação.

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A Botija, botija, Cãmara Cascudo, tesouro enterrado
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Doce de pelo

Clotilde Tavares | 8 de junho de 2009

casc100Em um livro de Câmara Cascudo, Viajando o Sertão, ele faz referência a um certo “doce de palmatória” que havia comido em Assu, cidade do Rio Grande do Norte pela qual o grande folclorista passou, na viagem à qual se refere o título do livro, realizada entre 16 e 28 de maio de 1934.

Curiosa que sou, e metida também a aventureira, refiz esse trajeto de Cascudo 65 anos depois de realizado, no ano de 1999, como você pode ver clicando aqui. A viagem foi gloriosa, cheia de experiências, visões, sabores e poesia, e se nunca publiquei esse relato é porque ninguém se interessou por editá-lo e eu não tinha – e nem tenho – dinheiro suficiente para tanto. Dorme sossegado numa das minhas gavetas, na companhia de textos e mais textos que tiveram o destino do ineditismo. Já escrevei esses mesmo parágrafo em outro post deste blog, aqui.

Ao fundo, a Serra Braca. A foto é de Gustavo Moura, que foi comigo em um trecho da viagem.

Ao fundo, a Serra Braca. A foto é de Gustavo Moura, que foi comigo em um trecho da viagem.

Uma das coisas que não consegui fazer na viagem foi conhecer o tal doce, que Cascudo teria degustado em Assu, em jantar oferecido pelo Dr. Ezequiel Fonseca. Gosto de comer coisas esquisitas, de sabores exóticos, e quando me deparei com essa referência, principalmente quando Cascudo diz que o doce era “superior às geléias de morango”, fiquei curiosíssima.

Ao chegar em Assu, fui informada de que o tal doce de palmatória era chamado de “doce de pelo” e que não era típico de Assu, mas de Angicos, cidade próxima. Embora me mimassem com uma sobremesa deliciosa de mel de engenho com farinha de rosca, não foi possível degustar o tal doce de pelo, que eu não conseguia imaginar como seria.

Carmen Vasconcelos

Carmen Vasconcelos

Finalmente, depois de mais de um ano assuntando aqui e ali em busca do tal doce, consegui ter acesso a esse prodígio da culinária angicana pelas mãos da poeta Carmen Vasconcelos, que me trouxe uma porção, preparada pelas mãos de Dona Terezinha, sua mãe, ambas angicanas de quatro costados. Lá se vão dez anos, mas a experiência sensorial e gustativa foi marcante, e para mim parece que foi ontem.

O doce é estranho. Imagine você que com tanta coisa no mundo para transformar em doce, o cristão inventa de tirar a polpa de uma palmatória cheia de pelos (daí o nome “doce de pelo”). A primeira coisa que se faz, depois de colhido o fruto da palmatória, é tirar-lhe os pelos, ou espinhos; a rigor, o doce de pelo não tem pelo. Bem, uma vez eliminado o pelo, retira-se a polpa do fruto, que se parece assim com um algodão acinzentado e um pouco úmido, polpa essa que também pode ser comida tal e qual, acrescentando-se apenas um pouco de açúcar, parecida com a polpa do ingá. Dessa polpa é que se faz o doce.

Glóbulos

Pérolas douradas de sol.

E o sabor? Bem, o sabor logicamente é de doce, mas feche os olhos e imagine-se colocando na boca um glóbulo do tamanho de uma uva grande e sentir esse glóbulo se desmanchar como minúsculas pérolas douradas dentro da sua boca. Sim, porque o gosto desse doce é dourado, cor de ouro.

As pérolas de ouro ficam rolando deliciosamente dentro da sua boca, numa experiência sensorial única, onde o sabor e a textura se misturam com a sensação de cor-de-ouro, do sol escaldante do sertão acumulado e concentrado no fruto áspero da palmatória e revelado pelas mãos sábias das doceiras angicanas.

Existem coisas, caro leitor, que a gente não deve morrer sem fazer. Provar o doce de pelo é uma delas. Iguaria dos deuses, sabor estranho, frutos dourados do sol: tudo isso é o doce de pelo, glória da nossa culinária popular.

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