A TECEDEIRA
Clotilde Tavares | 26 de outubro de 2019Eu vivo carregando nos ombros a coerência do mundo. Calada. Sem dar um pio.
Tem hora que o peso é tão grande que eu acho que o mundo vai desabar.
Ninguém presta atenção em mim, sentada nesse lugar, tecendo, mas sou eu que garanto a fala de qualquer um aqui, mesmo o mais pequeno.
Sou em quem põe a mesa todo dia pro banquete dos sonhos.
E quando tu sai de casa, vê o semáforo? Sou eu que mantenho ele aceso, pra evitar os desatinos nas encruzilhadas.
Tem hora que a gente sente que tem uma coisa dentro da gente que tá à beira de desmoronar.
Mas é preciso segurar. Eu mesma não quero gritar e me desesperar no meio dos escombros, no meio das ruínas.
Não!
Minha tarefa é cuidar, cuidar, cuidar das receitas, dos cadernos, dos desenhos, dos esquemas. Essas coisas, elas têm um espírito, e sem esse espírito elas viram sombras.
Aí o que eu faço: cuido, pra que o Espírito não fuja das cidades, das arquiteturas, dos corpos, e vá morar em outros países.
Tu quer saber meu nome? Por que?
A primeira coisa que acontece quando a gente dá um nome a uma coisa é se separar dessa coisa. Tu quer se separar de mim? É, porque eu já tou aí dentro de tu.
Eu vermelha, tu branco, aquele preto, o outro amarelo, algum azul e aquela ali verde, gente de toda cor. E aqui todo mundo é índio, exceto quem não é.
Ah. Tu não acredita. Tu já sabe de tudo. Tu é um herói do teclado. Faz assim: vai lavar a louça, juntar a roupa suja e tirar o lixo. Depois tu vai pro teclado, vai jogar, ver a temporada nova, o episódio novo.
E te cuida, visse, pra não embarcar nessa onda de ódio. Odiar quem odeia? Sem pensar em que é que isso vai dar?
Não basta tu saber que eu tou aqui, tomando conta da felicidade? Que eu tou de olho nos assassinos que querem acabar com ela?
Tu não acredita na minha (tua) alma invencível?
Existe uma vida secreta, umas perguntas novas, uns desejos…
Presta atenção. Escuta.
Ontem eu subi num alto, senti o vento no rosto… Foi tão bom!
(Respira.)
Texto que performei no palco da Casa da Ribeira, em 1º de maio de 2019, escrito por mim, baseado no primeiro capítulo de “A Cultura no Plural”, de Michel de Certeau.