Dia de Finados
Clotilde Tavares | 2 de novembro de 2009Na Região do Cariri paraibano, onde minha mãe foi criada, a Morte é chamada carinhosamente por um nome de mulher: Caetana. Minha mãe dizia que a Caetana tem duas formas: a Moça e a Onça. Quando vem no formato de Moça, nos abraça tão suave, deixa os cabelos caírem por cima da gente e nos carrega tão macio que a gente nem sente. Mas às vezes ela está virada na Onça, e nos morde com seus dentes de pedra e desfia nossa vida com suas garras, esfolando a gente vivinha ainda. O roçado dela é o mundo, e onde tem gente viva a Moça/Onça Caetana afia suas garras e treina seus abraços macios e mortais.
Quando a gente nasce, é como se assinasse um contrato, e viver é esperar a liquidação da fatura. Só por medo da Morte é que a gente agüenta a Vida que às vezes é mais Onça do que a própria Caetana. Shakespeare diz que é por medo da morte, dessa fatal viagem para o país desconhecido de onde ninguém jamais voltou que suportamos “a angústia do amor desprezado, a morosidade da lei, o orgulho dos que mandam, o desprezo que sofremos dos indignos… Quem carregaria suando o fardo pesado da vida se não fosse o temor da Morte?”
Há uma tradição mexicana que diz que cada pessoa morre três vezes. A primeira é a da morte mesmo, quando pára de respirar. A segunda é quando o corpo é sepultado. E a terceira é quando, em algum momento no futuro, seu nome é pronunciado pela última vez. Disso eu deduzo que não existe Morte: o que existe é o Esquecimento, pior, dez mil vezes pior do que a Morte porque às vezes acontece ainda em vida do freguês.
Se você viajar hoje pelo interior do Nordeste vai ver, nas janelas das casas perdidas no meio da escuridão da noite, velas acesas nas janelas: são as chamas dos mortos, brilhando na escuridão para que eles não sejam esquecidos. Como genealogista que sou, vivo cercada pelos meus defuntos queridos, esmiuçando suas vidas, reconstruindo seus passos, estabelcendo suas árvores de costados, seus laços de parentesco. Hoje é dia de me sentar na varanda quando a noite cair, acender a minha vela e, pacientemente, recitar em voz alta todos os seus nomes, por extenso, para que não caiam no esquecimento, começando pelo meu tetravô, tenente-coronel Teothonio da Santa Cruz Oliveira, que viveu entre Correntes-PE e Viçosa-AL nos idos do século XIX até minha tia Maria Anunciada Santa Cruz Quirino (1927-2008), a última que deixou este mundo, no Natal do ano passado.
E para não terminar nesse clima solene, conto uma historinha que ouvi quando criança. Um homem tornou-se compadre da Morte, e o trato era que, quando ela visse buscá-lo, mandaria um aviso para que ele pudesse se preparar, tomando as providências para deixar os negócios em ordem. Anos depois o aviso chegou. O homem se apavorou e na manhã da Morte chegar, ele estando morto de medo, a esposa, muito criativa, disse; “Se avexe não, Fulano. Vista uma roupa velha, vá lá pra junto do fogão, se lambuse todo de carvão, fique de cabeça baixa atiçando o fogo e deixe a Comadre Morte comigo.” E assim ele fez. Daí a pouco, quando a Morte chegou que perguntou pelo Compadre a mulher falou que ele tinha tido um chamado urgente e que tinha viajhado às pressas: não estava ali. A Morte ficou chateada. “Mas é danado mesmo!” disse. “Eu vim de tão longe pra esse compromisso com o Compadre e ele me fazer uma desfeita dessas! Tem nada não. Pra não perder a viagem, vou levar aquele preto velho que está ali, junto do fogão…”