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Barco perdido bem carregado

Clotilde Tavares | 24 de julho de 2010

É só imaginar: faz de conta que você compra um monte de coisas de valor e carrega um navio com elas, para entregar em algum lugar. No meio da viagem o barco se perde e fica vagando por aí, prato cheio para qualquer sabido que o encontrar primeiro e se apossar dele.

Essa imagem “barco perdido, bem carregado” eu conheço desde criança e sempre a vi ser aplicada àquelas pessoas que estão por aí, inocentemente, dando sopa, cheias de amor pra dar, soltas na gandaia e sem ter noção do perigo que correm.

Há uma música de Elino Julião que começa assim: “Barco perdido, bem carregado/ Eu tinha chegado em Natal/ Muito mal eu sabia onde era as Rocas/ Caí na fofoca legal”, diz a primeira quadra, traçando o retrato da situação.E continua: “Do Areal eu fui à Pista/ Limpei a vista na Tetéia/ Saí tomando uns capilé/ E quando dei fé, tava na Coréia…”

Reconstituindo o roteiro do personagem, vemos que ele não conhecia a cidade pois “muito mal sabia onde era as Rocas”. Junta-se a uma turma, das Rocas passa ao Areal e do Areal à Pista, que era como chamavam na década de 1950 à Avenida Hermes da Fonseca, a primeira avenida asfaltada da cidade, tendo sido o asfalto feito pelos americanos na época da Guerra. Aí o compositor diz que, depois de chegar à Pista, “limpou a vista na Tetéia”. Limpar a vista como? Vendo a paisagem? Haveria ali, antes do horizonte ser tomado por edifícios, um lugar especial para visualizar o azul do mar ou o verde do rio ao longe? E que Tetéia era essa? Perguntei a um, perguntei a outro, entrevistei notáveis e conceituados historiadores mas ninguém me dava notícia do que seria a Tetéia.

Aí telefonei para o próprio Elino Julião, que me solucionou o mistério. Segundo ele, na curva da Pista, quando a Hermes da Fonseca dobra ali na Praça das Flores, pertinho de onde hoje é o Mercado de Petrópolis, havia uma barraquinha, uma birosca, onde a rapaziada encostava pra tomar uma cachacinha com parede de tripa ou ribaçã assada, sirigüela ou picado. A proprietária, idosa, mal humorada, reclamando de tudo, cachimbo no canto da boca, um dente lá e outro cá, um pano amarrado na cabeça, atendia pelo doce nome de Tetéia. E “limpar a vista” era tão somente tomar uma “chamada”, para aclarar as idéias.

Com efeito, o personagem da música sai dali “tomando uns capilés” e quando dá acordo de si está na “Coréia” onde, como repete no estribilho, “só tem véia, só tem véia, no forró da Coréia…”

Elino Julião é ainda quem informa que o tal forró ficava nas imediações da lagoa que existia onde hoje é o Centro Administrativo. Forró pobre, decadente, sem paredes, latada precária, fora de mão, longe de tudo, frequentado apenas por aquelas mulheres que, desgastadas pelo exercício profissional, banidas dos bordéis de luxo, somente ali encontravam guarida.

A segunda estrofe da música fecha a história e é um apelo do personagem, ainda atordoado pela terrífica visão das velhas bacantes: “De outra vez quando eu for ao Rio Grande/ Por favor não me deixe eu andar só/ Eu prefiro ficar em Igapó/ Daquele forró, tenho receio/ A Praia do Meio é bom pra mim/ No Alecrim a gente se faz/ Eu fico lá trocando idéia/ Na Coréia eu não vou mais…”

Elino Julião

Elino tinha uma voz belíssima, bem modulada, gostosa. Era uma pessoa divertida, engraçada, um homem encantador. Quando ele ganhou o Prêmio Hangar de Música fui convidada para entregar-lhe o troféu. Fiz os elogios de praxe, chamei-o ao palco do Teatro Alberto Maranhão. Aí lá vem Elino, deslumbrante em um terno branco por cima de uma camisa azul brilhante, chiquérrimo, um arraso. Abraçou-me, me deu um beijo e cadê me soltar? Eu querendo formalizar a entrega do troféu mas ele estava lá, com uma pegada seguríssima, a mão na minha cintura.

Esse era Elino Julião. Risada gostosa, encanto de pessoa, artista completo, força sempre viva da nossa cultura.

Saiba mais aqui sobre Elino.

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barco perdido bem carregado, Elino Julião, forro da Coréia, forró nordestino, rabo do jumento
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