Os contos de Cantuária – uma romaria medieval
Clotilde Tavares | 18 de agosto de 2009Provavelmente o meu caro leitor sabe o que é uma romaria, e talvez até já tenha participado de uma. Quando falo em romaria quero dizer a viagem de um grupo de pessoas a um lugar santo, a um igreja, a uma cidade sagrada. A minha mãe era romeira do meu padrinho Padre Cícero Romão Batista e todos os anos, no mês de janeiro, partia para o Juazeiro, em ônibus lotado especialmente para esse fim. São famosas as romarias ao Bom Jesus da Lapa e a São Francisco do Canindé, para citar apenas duas das mais concorridas do Nordeste.
Uma romaria que passou à história embora jamais tenha acontecido de verdade é o tema de uma das maiores obras da literatura universal, obra essa que me apaixona há muito tempo e que hoje quero compartilhar com você: trata-se de “Os Contos de Cantuária” (“The Canterbury Tales”) escrito em 1368, ou seja, há mais de seiscentos anos por Geoffrey Chaucer, escritor inglês, funcionário da corte na época de Ricardo II.
“Os Contos de Cantuária” tem como fio condutor uma romaria que vinte e nove peregrinos resolvem fazer juntos ao túmulo do Santo Thomas Beckett. Combinam então contar histórias para encurtar a viagem e se distraírem no trajeto. Essa estrutura narrativa era comum na literatura medieval e ainda continua sendo uma boa forma de contar histórias nos dias de hoje.
O melhor do livro é que ele mostra um variado panorama da vida medieval, uma vez que diferentes pessoas estavam representadas nessa animada companhia: um cavaleiro, um moleiro, um monge, um padre, uma freira, um mercador, um estudante, um proprietário de terras, um médico, um magistrado… Cada um, ao contar sua história, traz elementos da sua profissão, da sua visão de mundo, enriquecendo o relato e dando exemplos da cultura medieval e das atividades humanas em narrativas palpitantes, cheias de vida e, muitas vezes, picarescas, como no Conto do Moleiro, repleto de leves e graciosas obscenidades.
Um dos meus preferidos é o Conto da Mulher de Bath, onde a narradora defende que os prazeres do sexo não devem ser prerrogativa exclusiva do sexo masculino, tendo as mulheres o direito de se divertirem da mesma forma que os homens. A defesa que ela faz dessa tese antes de narrrar o conto propriamente dito é ousada, inteligente e engraçadíssima, tornando a mulher de Bath uma das grandes personagens da literatura universal.
Um dos traços mais importantes dessa obra é que, numa época em que os livros eram escritos em latim, considerada a língua oficial, a língua culta, Chaucer escreveu em inglês. Não o inglês que conhecemos hoje, porque naquela época a língua inglesa, a rigor, ainda não existia. Chaucer utilizou parte inglês anglo-saxão, parte francês normando, recheado de palavras latinas, enfim, a língua que se falava na corte. Nessa época de consolidação política da nação inglesa o idioma também nascia e se consolidava, tomando feição própria a partir de elementos saxões, normandos, latinos e o mais que fosse. Pode-se dizer, sem medo de errar, que Chaucer “inaugurou” a língua inglesa na literatura.
Vale a pena embarcar nessa viagem com os peregrinos e ouvir suas histórias. O livro é difícil de encontrar, mas na Biblioteca da UFRN eu encontrei uma edição em português, editada por T. A. Queiroz, com data de 1988, que traz apresentação e notas de Paulo Viziolli, que também assina a tradução. Há ainda um filme de Pasolini – simplesmente maravilhoso – embora não contenha a totalidade das histórias contadas por Chaucer e, obviamente por ser uma adaptação, priva o leitor dos aspectos literários do texto.
De uma coisa estou certa: lendo o livro, além do prazer natural que tirará de leitura tão agradável e rica, o meu caro leitor receberá as bênçãos generosas do santo Thomas Beckett, em nome do qual se empreendeu esta monumental romaria literária.
Mais links: Quadrilha Medieval, De Rerum Natura,