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Adiza Santa Cruz Quirino, “Tia Adiza” (1916-1990)

Clotilde Tavares | 1 de julho de 2024

      

Os descendentes de Pedro Quirino Ferreira e Inez Santa Cruz Ferreira, todos eles, são devedores desta mulher, tia Adiza, ou simplesmente “Tia”, cuja dedicação à família foi a motivação mais importante da sua vida. Não houve filha mais dedicada, irmã mais compreensiva, cunhada mais prestimosa e tia mais generosa, boa, dadivosa, sempre gastando o que tinha e o que não tinha para ajudar qualquer um do seu sangue que estivesse em dificuldades. Por causa dessa dedicação sempre colocou em segundo plano sua vida pessoal e, depois de longo noivado, desistiu do casamento para se dedicar a quem precisava dela: irmãos e sobrinhos.

Numa época em que as mulheres só se realizavam através da maternidade e da dedicação aos maridos, Adiza trabalhou no comércio em escrituração contábil, tendo começado ainda na década de 1940 em Ottoni & Cia., em Campina Grande, e depois em uma firma de exportação de couro, Armando Lobo & Cia. A partir dali, quando a firma fechou, trabalhou com João Ferreira Torquato no escritório de contabilidade deste, até aposentar-se.

Morou com a irmã Cleuza (minha mãe) a partir de 1947 e a ajudou na criação dos filhos, mas sempre foi devotada a todos os sobrinhos. Era presbiteriana, mas nunca impôs a ninguém a sua crença, cantando os hinos com bela voz de soprano. Na cozinha mostrava seu talento na pamonha, na canjica, no puxa-puxa, nos bolos e doces, que só ela sabia como dar o ponto. Seu prazer era chegar em casa à noite, depois do trabalho, e deitar-se numa rede, embalando-se com os sobrinhos, enquanto cantava antigos romances; e quando ia balançar a rede para um deles dormir, inventava cantigas especiais para cada um, cantigas até hoje lembradas.

Sob a sua ficha genealógica tive que escrever “sem descendência”, pois não teve filhos. Mas aqui quero registrar toda a rica descendência de Amor com que, inesgotavelmente, nos nutriu a todos.

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adiza, Campina Grande, infancia, Memória, tia adiza

Alguns usos do livro

Clotilde Tavares | 11 de julho de 2023

Usos do livro? Como assim, pergunta você, meu razoável e esclarecido leitor. Livro é uma coisa que tem somente um uso, e que se resume à leitura do seu conteúdo. Você entende a importância da leitura, sabe que o livro é um veículo adequado à transmissão e à propagação do conhecimento; que é um objeto que tem muitas características, quanto a tamanho, aparência, número de páginas, e aos diferentes conteúdos, mas uso mesmo você não consegue imaginar outra coisa para fazer com o livro a não ser lê-lo, ou ignorá-lo, se for o caso em que o conteúdo não lhe desperte interesse. Nesse caso, coloca-se o livro em algum lugar e esquece-se dele.

Agora em abril contei os livros que tenho em casa. São cerca de 2.300, de todo tipo e gênero, e alguns eu tenho desde a minha mais antiga infância. Já tive mais, já tive mais de três mil, mas sempre estou doando. Pois bem: eu, que tenho livros em casa, vou lhe contar alguns usos deste objeto que você nem imagina, e que não têm nada a ver com o ato da leitura.

Quem tem TOC, mesmo na sua forma moderada, pode usar uma quantidade boa de livros para se distrair catalogando, colecionando, descobrindo formas de organizar o acervo. Organizar uma coleção de dois mil e tantos livros: supremo prazer. Isso requer toda uma operação prévia de planejamento, porque os métodos consagrados pela biblioteconomia jamais servem para os nossos próprios livros. A nossa forma não só é a melhor, como a mais funcional e produtiva, e a gente simplesmente não entende porque não é adotada ainda pelas grandes bibliotecas do país. E assim, começamos geralmente pelos critérios que iremos adotar para arrumá-los, como autor, estilo, ou gênero, clássicos ou contemporâneos, ensaio, poesia ou ficção, deixando juntos todos os de Cascudo, os de Borges, os de Suassuna, os de teatro – e agora, como fazer? O Auto da Compadecida fica junto com os de teatro ou com os de Suassuna? Devo comprar um segundo exemplar, para que nenhuma das categorias fique inferior à outra? E mergulhada nessas questões vejo passar a tarde, ou a noite, e a diversão é garantida.

Outro uso do livro é ocupar as mãos enquanto a cabeça precisa resolver um problema. Nesses casos, é preciso colocar uma mesinha auxiliar junto da estante, e ir tirando os livros da prateleira, com lentidão e carinho, um a um, folheando, revendo dedicatórias, procurando grifos antigos ou papeizinhos entre suas páginas, ou simplesmente tendo-os entre as mãos, distraída, como se alisasse o dorso de um gato ou brincasse com as orelhas de um cachorro. Os livros vão se amontoando sobre a mesa, a prateleira fica nua, pronta para o pano que vai tirar aquela poeira – e nada de pano úmido porque umidade não combina com livro. A cabeça, cercada pela afetuosa presença e manuseio dos livros queridos, fica relaxada, confortável, tranquila e de repente, voilá! Aparece a solução perfeita para aquilo que estava exigindo uma decisão, uma resposta, um encaminhamento.

Quando a leitora é jovem, os livros servem para assustar os namorados. Eu nunca compreendi porque aquelas criaturas cujos cérebros louros e bronzeados que só entendiam de marés e pranchas achavam que tinham que ler para poder namorar uma leitora. Entravam na minha casa e diziam: Mermão, vou ter que ler isso tudo? Era o comentário dos filhos de Poseidon, semideuses das ondas e dos ventos, ao se depararem com aquelas paredes cobertas de livros. Eu perguntava: Rapaz, eu vou ter que me equilibrar numa prancha e surfar? Claro que não, diziam. Aí eu encerrava: Então você não precisa ler tudo isso. Bora ali, bora conversar um assunto – e a gente ia brincar de Eduardo e Mônica.

Um dos meus usos preferidos para o livro é quando acordo de manhã e abro a porta do quarto para o resto do apartamento, cheio de livros, que passaram a noite ali, fechados, exalando e concentrando seu maravilhoso cheiro de madeira adocicada. Eu inspiro e encho o pulmão com o melhor perfume do mundo, odor de árvores antigas, de mel, de sementes doces, olhando aquelas lombadas amadas, berço de histórias lidas, relidas ou ainda não lidas, mas que já estão comigo, e que me cercam de doses de carinho e afeto cuja intensidade os humanos desconhecem.

Mas o melhor momento é quando paro a leitura porque um trecho me emocionou ou me fez refletir, e coloco o livro aberto sobre o peito, sincronizando meu coração com o dele. Desce sobre mim a calma dos abençoados, cerro devagar os olhos, e tenho a certeza de que, enquanto o mundo ferve lá fora, eles sempre estarão ali comigo e nunca, nunca, nunca irão embora, nunca me deixarão sozinha.

————-

***ALGUNS USOS DO LIVRO***
por Clotilde Tavares Publicado no dia 06/06/2023 no blog Típico Local <tipicolocal.com.br> e no Facebook

*A foto, feita na mesma data, mostra uma das minhas estantes.

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Comportamento, Cultura, Humor
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arrumar estantes, biblioteca, biblioteconomia, catalogação de livros, estante, leitura, livro, Memória

Anacoreta urbana

Clotilde Tavares | 19 de junho de 2021

Tenho 73 anos de idade, e sou uma sobrevivente. Sobrevivi a uma ditadura militar, quatro casamentos, dois partos, uma dependência química, um grave acidente de carro, um tumor na coluna, vinte e seis anos de docência universitária que incluíram cerca de trezentas reuniões de departamento, trinta anos de teatro, onze cirurgias e doze anos de farra e loucura.

Tenho um passado, e isso me alegra, porque penso que não há coisa mais sem graça do que uma mulher sem passado.

Hoje, sinto que a vida é só isso: hoje. Aprendi com os monges a viver o presente, esse milagre que se reproduz a cada minuto, no suave pressionar das teclas pelos meus dedos. Aprendi também que a verdade, o tempo, o passado, tudo é construção. Mas isso eu só aprendi depois de ter acreditado muito, esperado muito, recordado muito. Venho aprendendo a construir minhas narrativas, minhas epopeias, meus dramas, que assim passam a me pertencer, de maneira inquestionável.

Esse roteiro que traço entre um fato e outro, essa intriga, como diria Paul Veyne, me ajuda a encontrar meu lugar no mundo. A cada ano que passa, vou me livrando da dimensão material, externa, e me expandindo no nível da introspeção, das viagens interiores, confirmadas pela presença de Netuno em Libra, na nona casa da minha carta astral.

A pandemia reforçou minha atitude de anacoreta urbana. Na Bolha, a cavaleiro de Petrópolis, vivo sozinha com minha nesga de mar e o farol, que sinaliza as distrações e aponta o caminho de casa para a minha mente, errante e navegante. Encontrei na crise do planeta a desculpa que eu precisava para me recolher com meus livros, meus filmes, meus cadernos, minhas traquitanas eletrônicas, meus quadros e plantas, e as pedras espalhadas por toda a casa, atestando que sou filha de Xangô, kawó-kabiesilé!

A vizinhança é silenciosa. Aqui, nas alturas do 10º, o passarinho fez um ninho na janela, a um metro de onde me sento para ler todo final de tarde, enquanto o sol se põe sobre esta cidade linda e impossível.

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Comportamento, Memória, Pop-filosofia
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aprendizado, Farol de Mãe Luiza., Memória, Natal, Paul Veyne, Petrópolis, Xangô
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Os maremotos da saudade

Clotilde Tavares | 6 de janeiro de 2018

balaustrada getulio vargas

Último dia do ano e eu resolvi dar uma volta de carro pela minha cidade Natal. Quase sem sentir, fui na direção dos bairros de Tirol e Petrópolis, onde gastei praticamente dez anos da minha juventude, tendo o Hospital das Clínicas e a minha casa na Pinto Martins como pontos de referência. Estava tudo lá como no passado, e passei por ali sem ver os edifícios, nem as estruturas de vidro fumê, nem o que foi acrescentado depois. Vi Natal dos anos 1970, e me vi também, com meus 45 quilos de pura energia, subindo e descendo aquelas ruas, a pé, carregada com os pesados livros de Medicina, indo para a rua do Motor onde eu atendia as crianças no Centro de Recuperação Nutricional da UFRN, ou o Pronto Socorro do Hospital das Clínicas, a Maternidade-Escola, a Pediatria. Passei de carro hoje, devagar, pela avenida Getúlio Vargas e olhei o mar – igualzinho ao daquele tempo, as nuvens cheias, e o céu com uma Lua ainda tímida e desbotada, a me espiar lá de cima. E antes que os maremotos das saudade agitassem meus olhos com o sal das lágrimas, prudentemente tomei a Prudente de Morais e voltei ao abrigo uterino dest’A Bolha onde, na poltrona macia e entre séries e livros, pretendo esperar o Ano Novo.

Publicado no Facebook em 31 de dezembro de 2017.

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Memória
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Memória, Natal-RN, saudade
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Uma visita importante

Clotilde Tavares | 24 de janeiro de 2015

Alessandra Stewart e eu. Dezembro de 1989.

Em 1989 eu morava em Capim Macio. Numa noite de dezembro, convidei uns amigos para comemorar meu aniversário e preparei tudo para recebê-los no jardim da frente. Dezembro todo mundo sabe como é: festa em todo canto, e como meu aniversário é no dia 14, sempre há dificuldade de juntar gente nesta data ou perto dela. Principalmente nesse ano, pois a minha festa coincidia com o FESTNATAL/Festival de Cinema e o Carnatal. Ao convidar meu vizinho da frente, Mano Macário, nome artístico de Luiz Antonio da Silva, ele disse logo que não podia vir, pois ia sair no bloco das Kengas, no Carnatal.

Mano era – e ainda é – um homem muito bonito. Nessa época, estava usando cerrada barba negra e me disse que ia tirar a barba para a caracterização que usaria no bloco, onde ia fazer “uma mocinha”. “Não seja por isso”, eu falei. “Quando sair do bloco, passe aqui, com o visual de mocinha mesmo, que eu terei prazer em lhe receber. Vou inventar para os convidados que estou esperando uma atriz do Festival de Cinema.” E assim ficamos combinados, as horas passaram, chegou a noite e os convidados começaram a chegar.

Anunciei que estava esperando a atriz Alessandra Stewart, amiga minha, que estava no elenco do filme “Faca de Dois Gumes”. Falei que tinha conhecido ela no Rio há tempos e que tínhamos ficado muito amigas. O nome, obviamente, era inventado e não havia atriz com esse nome no elenco do filme. Uma das minhas amigas disse logo: “Ah, eu sei quem é.” E outra perguntou: “Não é aquela que trabalhou no filme Tal?” e eu: “É essa mesma.” E enfeitei a mentira: “Ela passou um tempo nos Estados Unidos e voltou só pra fazer esse filme.” A primeira amiga comentou: “Ela é linda! Muito boa atriz.” E a outra: “Não é ela que teve um caso com Reginaldo Farias?” E eu: “Essa mesma!”

Essas minhas duas amigas são daquele tipo que sabem de tudo, viram todos os filmes, leram todos os livros e conhecem tudo – você entende, você deve conhecer gente assim. E a festa foi correndo e eu alimentando o suspense: “Alessandra está demorando!” E as outras, ansiosas pra conhecer a celebridade: “Mas ela vem?” E eu: “Vem sim, ela prometeu.”

E lá pras tantas chega no portão Mano Macário, com um minivestido preto de bolas brancas, peruca arrasadora, sem barba, maquiadíssimo, salto alto, uma verdadeira patricinha. Obviamente, via-se que era um homem vestido de mulher, mas irreconhecível até para os seus amigos, acostumados e a vê-lo com a frondosa barba preta. Quando eu o vi, saí aos gritos: “Alessandra Stewart, quanta honra! Entre, querida, pois quero apresentá-las às minhas amigas.” E vou te contar: dinheiro nenhum paga a cara das duas quando viram a presepada.

Foi lindo.

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Curiosidades, Humor, Memória
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Alessandra Stewart, Carnatal, cinema brasileiro, Faca de dois gumes, FestNatal, hoax, Kengas, Mano Macário, Memória
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Os antigos contavam

Clotilde Tavares | 7 de setembro de 2013
Moças. Anos 1930. Arquivo de família.

Moças. Anos 1930. Arquivo de família.

Os antigos contavam:

A moça gosta de fazer piadas, de pregar peças, de enganar os outros. Faz isso por diversão, e para chamar a atenção.

Um dia o empregado da fazenda mata uma cobra e atira o bicho morto para um canto da cerca. A moça vai, escondido de todos, carrega a cobra morta para dentro de casa, bota dentro da rede, faz que vai se deitar e começa o alarido: “Ai ai ai, me acudam, uma cobra, uma cobra!” Todos correm, lá está ela aos gritos, descabelada, mostrando a cobra na rede. Os outros com cuidado se aproximam e veem logo que o animal não se mexe, está morto, e o empregado diz lá de fora: “É a cobra que eu matei hoje de manhã.” A mãe briga com a moça. “Isso não se faz, assustando a família desse jeito.”

A cobra é retirada, a moça fica rindo-se pelos cantos do susto que pregou em todos. Vai na cozinha, bebe um copo de água, dá um volta pela casa, pega o bordado e vai sentar na varanda, o casamento está perto, o noivo mora longe e ela se distrai bordando o enxoval.

Mais tarde, sente a vista cansada e resolve se deitar um pouco. A família entregue às suas tarefas, a casa está em sossego. Tão logo entra no quarto, e vai para a rede, começa tudo outra vez: “Ai ai ai, me acudam, me socorram, uma cobra, uma cobra!” A mãe e a tia na cozinha, o empregado na horta, a velha com o cachimbo na boca lá no tanque lavando roupa, ninguém se importa muito: é a moça de novo com suas brincadeiras. Como ninguém dá atenção, ela se cala.

Mais tarde a família a encontra na rede, dura, um fio de saliva a escorrer pelo canto da boca, os olhos virados, a língua escura. Entre os seios virgens, a negra jararaca ressona, tranquila, livre do veneno.

Aí os antigos dizem que as cobras se casam para a vida inteira. Quando a fêmea morre, o macho sente, e vem atrás dela, pelo cheiro. Encontra o rastro, encontra a rede, encontra a moça.

Essa é a história.

 

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conto popular, folclore sobre cobra, histórias de cobra, lenda nordestina, Memória, tradição
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Um mundo sem plástico

Clotilde Tavares | 27 de agosto de 2009

Nesses últimos dias, onde a mudança de apartamento tem transformado minha vida e meu juízo numa amostra do caos, tem horas em que a gente não consegue encontrar as coisas simples di dia-a-dia, soterradas no meio da bagunça. Foi assim que hoje, depois que fiz um sanduíche, vi que não havia guardanapo de papel. Remexendo nas coisas ainda desarrumadas encontrei guardanapos de tecido, que uso raramente; passei um deles em volta do pão e quando ia começar a comer senti aquela sensação de estranhamento, de coisa suja, anti-higiênica.

Isso me deu o que pensar, uma vez que durante toda a minha infância e parte da adolescência era assim que eu levava o lanche para a escola: um pão com alguma coisa dentro, que podia ser um ovo frito, um naco de goiabada, uma fatia de queijo de coalho ou simplesmente a boa e velha manteiga, tudo isso embrulhado em um guardanapo de pano. É que nessa época, meu caro leitor de menos de cinqüenta anos de idade, não havia guardanapos de papel. Mais espantoso ainda: não havia plástico. Faça agora um pequeno exercício de imaginação para visualizar como era esse mundo, com era essa vida sem plástico.

As embalagens, todas elas, eram de papel, de cartão ou de cartolina; usava-se ainda o bom e velho vidro e as latas de metal. Não havia caixinhas de suco ou de leite longa vida, nem garrafinhas brancas de iogurte e muito menos bandejas de isopor recobertas com filme plástico. Mais espantoso ainda: não havia supermercados. Comprava-se alimento na feira, no açougue ou na mercearia da esquina, de onde as verduras, o feijão e o arroz, a carne, os ovos e o pão vinham embrulhados em papel, que ficava amontoado em folhas de cerca de 60 por 80 cm em cima do balcão, com um peso em cima. O bodegueiro colocava o papel aberto no balcão, e ali colocava o arroz ou o feijão. Depois, habilmente, torcia o papel entre o dedo polegar e o indicador, fazendo uma espécie de dobradura que atuava como uma verdadeira costura sobre o papel, ensacando perfeitamente o alimento. O leite era entregue na porta de casa, e vinha em latões sobre uma carroça puxada por burro. Ou então ia-se buscar o leite em algum curral perto de casa, já que não havia proibição para esse tipo de atividade na zona urbana. Pasteurização era algo desconhecido.

As galinhas chegavam vivas e estressadas da feira, atadas pelos pés e penduradas de cabeça para baixo nas bordas do balaio com as compras, equilibrado sobre a cabeça do balaieiro; ao chegar em casa, eram colocadas no quintal para engordar um pouco e sossegarem antes de serem mortas com um golpe certeiro no pescoço para aparar o sangue que, colocado no vinagre para não talhar, transformava-se pelos milagres da alquimia culinária na deliciosa cabidela. Nesses tempos sem plástico também não havia sabão em pó, amaciante, papel higiênico com perfume de baunilha, nem detergente para a pia. Não se conhecia maionese, nem iogurte com mil sabores, nem margarina. Como dizia o escritor Rubem Braga, nesse tempo todo telefone era preto e todo refrigerador era branco.

Divirto-me em levar meus filhos e netos a imaginarem um mundo sem plástico, sem isopor, sem supermercados ou shopping centers, sem TV a cabo e sem computador e sinto que é como se eu estivesse falando a eles de um outro planeta, de estranhos alienígenas que comiam pão com doce no lanche da escola e matavam as galinhas na cozinha da casa aparando o sangue para fazer cabidela. Um tempo que já se foi e que não volta mais, porque a vida agora é outra e a tecnologia que trouxe o plástico e o isopor trouxe também os antibióticos, as substâncias que prolongam a vida e promovem a saúde. A tecnologia trouxe também algo que considero ser uma das coisas mais importantes desses últimos tempos: as possibilidades cada vez mais reais e eficazes de comunicação entre as pessoas, superando diferenças, exercitando a tolerância e praticando a boa vontade. Admirável mundo novo, é esse, e estou feliz por estar vivendo nele.

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