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Cultura popular, seiva da Vida

Clotilde Tavares | 23 de novembro de 2009

Um dia desses recebi um e-mail de um leitor que me perguntou como era que eu, uma professora universitária, formada em Medicina, com pós-graduação e outros badulaques acadêmicos, tinha tanta afinidade com o folclore, com a cultura popular, com as coisas do povo. “De onde vem essa ligação, Clotilde?” perguntou-me o leitor. “Como você penetrou nesse mundo?” Em vez de responder, quero contar algumas coisas da minha infância.

Campina Grande, meados do século XX.

Passei minha infância em Campina Grande, na Paraíba, na década de 1950. Pela manhã, quando e meus irmãos saíamos da quentura da cama, depois de escovar os dentes e banhar o rosto com água “quebrada a frieza”, vínhamos para a mesa tomar o café com pão, manteiga, cuscuz, ovo frito e leite. Depois do café era a hora do banho-de-sol na calçada de casa, onde Papai, indo para o trabalho diário no jornal, se despedia de nós. Pedíamos a bênção e ele sempre respondia: “Deus te abençoe.” Mamãe conversava com a vizinha assuntos secretos que se encerravam quando um de nós se aproximava. “Comadre, olhe os meninos…” E se calavam.

Depois do banho-de-sol entrávamos em casa e o rádio era ligado no programa “Retalhos do Sertão”, da Rádio Borborema, onde os repentistas José Gonçalves e Cícero Bernardes cantavam sextilhas, glosavam motes e, no final do programa, invariavelmente, disparavam num galope-à-beira-mar ou num martelo-a-desafio de tirar o fôlego. A manhã se adiantava, o programa de rádio terminava e íamos brincar no quintal, onde passávamos o tempo a construir com areia, fragmentos de madeira, latas e caixas vazias uma fazenda completa com a casa grande, a casa de farinha, e os cercados e currais onde eram abrigados os bois e cavalinhos de barro que Mamãe comprava na feira.

Na hora do almoço comíamos feijão, arroz, carne assada, farofa de cuscuz. Verduras e saladas não faziam parte do hábito alimentar. Depois da refeição, havia “um docinho”, que podia ser doce-de-leite ou um naco de goiabada em lata espetado num garfo. Tirada a mesa do almoço e arrumada a cozinha, começava a brincadeira de desenhar.

Mamãe mandava comprar na mercearia da esquina uma folha grande de papel cor-de-rosa que era usada para fazer embrulhos e pacotes, e cortava essa folha em pedaços menores. Desenhávamos muito e eu tenho ainda viva na memória a lembrança da textura daquele papel rústico e macio, que eu cobria de renques e mais renques de árvores, todas diferentes c umas das outras, com ramos retorcidos e estilizados.

Angelim-PE

Ao lado da mesa, Mamãe sempre às voltas com a máquina de costura contava casos e histórias da sua infância, passada nas terras do meu avô, primeiro no sítio Boqueirão, no Cariri paraibano e depois na Broca, em Angelim, agreste de Pernambuco. Eram muitas as histórias e uma das que mais gostávamos era a do eclipse total do Sol, que havia pegado a todos de surpresa: a uma hora da tarde, sem que ninguém soubesse antes o que iria acontecer, o dia havia de repente se convertido em noite, fazendo os passarinhos endoidarem à procura dos ninhos e as raposas procurarem as tocas, deixando todos estupefatos, no meio do roçado, mergulhados na escuridão, distantes de casa quase uma légua.

Nisso se passava a tarde e, no fim do dia, banhados e trocados de roupa, tomávamos a nossa sopa de feijão ou o prato de xerém com leite, seguidos de tapioca e café-com-leite. Na boquinha da noite já estávamos de novo na calçada, brincando de roda, de toca, e das brincadeiras “de menina”: anel, berlinda… Papai apontava na esquina e corríamos para encontrá-lo e com ele entrar em casa onde o víamos jantar e depois sentar-se na espreguiçadeira da sala para ler e ouvir rádio.

Começava então a hora mágica das histórias de trancoso que não podiam ser contadas de dia sob pena de ambos, contador e ouvinte, criarem rabo. A noite era hora também da leitura dos folhetos, e ainda posso ouvir a voz de Mamãe recitando “O Pavão Misterioso”, ou “Juvenal e o Dragão”. Depois era hora de lavar os pés, tomar um copo de leite com açúcar e ir dormir, depois de rezar o “Santo Anjo do Senhor/ Meu zeloso guardador/ Se a ti me confiou/ A piedade divina/ Sempre me rege/ Guarda/ Governa/ E ilumina/ Amém.”

O sono vinha rápido cerrando nossos olhos e abrindo a cortina da mente para os sonhos, povoados de paisagens do sertão e de seus personagens, feras encantadas, fazendeiros cruéis e princesas prisioneiras, almas do outro mundo e bichos que falavam.

Então, não é questão de gostar ou não da cultura popular. Ela é o elemento fundador da pessoa que sou hoje, faz parte de mim, do que faço. Ela determina meu papel no mundo, e dela me vem, através dessas profundas raízes, a própria seiva da Vida.

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Cultura, Memória
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Campina Grande, cultura popular, folclore, literatura de cordel, pavao misterioso, santo anjo do senhor
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