Deixe de pantim!
Clotilde Tavares | 27 de dezembro de 2011Um dia desses, discutia-se numa das listas que freqüento na Internet sobre o significado das palavras “pantim” e “muganga”. Bráulio Tavares escreveu sobre isso um dia desses no seu blog.
Eu passei minha infância ouvindo as duas palavras, incorporadas no rico dialeto caririzeiro-paraibano que Mamãe falava.
Pantim é difícil de definir. É quando você faz algo para “distrair o inimigo”, ou seja, quando negaceia, disfarça, enrola… Ou quando você falsifica uma ação para obter algo que não quer explicar diretamente. Já muganga é trejeito facial ou corporal, careta.
Voltando ao “pantim”, o diálogo abaixo, travado entre meus pais numa noite, explica melhor:
– Nilo, onde tu tava até uma hora dessa? – Mamãe, direta e nada sutil, atacava com a pergunta.
– Mas minha filha, é somente uma da manhã.
– Sim, mas onde tu tava?
– Você sabe Fulano? – começava papai. – Presidente da Associação Comercial? Pois eu encontrei com ele ontem…
– Não tou falando de ontem, mas de hoje. Onde é que tu tava?
– Espere, eu preciso lhe explicar. Você sabe que em Campina, desde que o prefeito mudou, que todos esses órgãos, como a Associação Comercial, a Federação das Indústrias, a…
Era aí que mamãe interrompia, já impaciente:
– “Ômi”, deixa de pantim e diz logo onde é que tu tava até uma hora dessa!
(…)
Postei esse diálogo na lista para exemplificar o que era o tal do pantim. Aí Leo Sodré, participante da lista, escreveu:
– Mas, onde Nilo estava mesmo? É bem capaz de ter levado Omega nessa farrinha…” (Omega era o avô de Leo, amigo de Papai).
Eu escrevi:
– Nilo devia estar com Omega no cabaré de Zefa Tributino, ou na Unidade Moreninha. Os dois assinavam ponto num ou noutro lugar toda noite.” (As referências são à vida noturna de Campina Grande na década de 1950/60)
Aí Bob Motta, que é poeta, escreveu:
Nilo tava c’á bixiga, (A)
e se sintindo no céu. (B)
Lhe juro, Crotilde, amiga, (A)
foi de beréu in beréu. (B)
Teve lá no Canaríin, (C)
dispôi saiu de finíin, (C)
mode qui num tava só; (X)
duis putêro de Campina, (D)
visitô os das Bunina, (D)
da Prata e Bodocongó… (X)
(Veja o esquema de rimas: o 1º verso rima com o 3º; — o 2º com o 4º; — o 5º com o 6º; — o 7º com o 10º; — e o 8º com o 9º. A estrofe é uma décima que comporta variados esquemas de rima, sendo este citado apenas um deles. A métrica é sete sílabas, redondilha maior, que você reproduz pronunciando em voz alta as palavras “ma-ra-cá, ma-ra-ca-tu”. Além disso, Bob Motta usa a chamada “linguagem matuta”, que consiste em um “português estropiado” – que não é usada nem pelo cantador de viola, nem pelo autor de folhetos de cordel e nem por mim, que procuramos usar sempre o português correto, mas é característica da chamada “poesia matuta”, cujo principal representante foi o poeta Catulo da Paixão Cearense. Forneço essa explicação para que as pessoas entendam como é complexa e rica a arte da poesia popular nordestina.)
Eu, que não deixo verso sem resposta, respondi seguindo o mesmo esquema, mas no calor do improviso deixei escapar a rima da terceira linha.
Nilo não tava sozinho
Na rota da sacanagem
Com o seu amigo Omega
Em total camaradagem
Lá em Zefa Tributino
Beberam uísque do fino
Com Paraguaíta e Nina
E com Chiquinha Dezoito
Pintaram o sete e o oito
Nos cabarés de Campina…
Bob Motta escreveu, repondendo:
Nilo tava de zonzêra,
lá na Ìndios Carirís,
bebeu quage a noite intêra,
no Canaríin, pidiu bis.
Na Unidade Moreninha,
lá nais Bunina intêrinha,
o peste num tava só;
tava prá lá de intêro,
foi in tudo qui é putêro,
da Prata e Bodocongó…
Aí eu fechei:
E quando chegou em casa
Mais pra lá do que pra cá,
Cleuza já tava na brasa
E começou o fuá:
Neguinho, conte direito!
Me conte de todo jeito,
Eu lhe peço mesmo assim!
Onde tu tava, maldito?
Tu acha isso bonito?
Ômi, deixe de pantim!
Este post é dedicado à pesquisadora Maria Alice Amorim, minha especial amiga, cujo trabalho sobre poesia popular está merecendo um post especial somente para ela, coisa que venho devendo há meses.