O poder de síntese da poesia nordestina
Clotilde Tavares | 21 de agosto de 2009Uma coisa que sempre me surpreende na poesia popular nordestina é a capacidade de síntese dos poetas. Em poucas palavras, arrumadas em um estrofe de seis linhas conhecida como sextilha, o poeta consegue expressar de forma completa um pensamento, um sentimento, uma idéia ou até mesmo resumir uma história.
Veja, por exemplo, a primeira estrofe do folheto de cordel “O Pavão Misterioso”, da autoria de José Camelo de Melo Rezende, folheto esse que deve ter sido publicado nas primeiras décadas do século XX:
“Eu vou contar a história
De um pavão misterioso
Que levantou vôo da Grécia
Com um rapaz corajoso
Raptando uma Condessa
Filha de um conde orgulhoso…”
Apenas com uma estrofe o poeta situa a história, transmite o clima de aventura e perigo e introduz o conflito da trama, que se estabelece entre o rapaz e o conde, em disputa pelo amor da Condessa; de quebra, caracteriza os personagens, atribuindo coragem ao rapaz, orgulho ao conde e beleza à tal condessa, é claro, que ninguém vai se dar ao trabalho de raptar mulher feia.
Quer outro exemplo? Pergunte a qualquer pessoa quais são as três piores coisas do mundo, e peça para explicar por que. Nove entre dez mortais vão passar uma hora explicando e gastando palavras. O poeta não. Veja essa décima (estrofe de dez linhas) atribuída a Louro Branco que responde à sua pergunta:
“Um grande sábio profundo
Me perguntou certa vez
Se eu conhecia as três
Piores coisas do mundo
Lhe respondi num segundo
E lhe dei explicação:
– Doido, mulher e ladrão.
Doido não tem paciência
Ladrão não tem consciência
E mulher não tem coração.”
Sintético, enxuto, exato, na medida. Uma estrofe perfeita.
Outra da qual gosto muito é uma sextilha atribuída ao poeta pernambucano Antonio Marinho, sogro do não menos famoso vate Lourival Batista, dos Batistas de São José do Egito. Sobre a saudade, fala Antonio Marinho:
“Quem quiser plantar saudade
Escalde bem a semente
Plante num lugar bem seco
Quando o sol tiver bem quente
Pois se plantar no molhado
Ela cresce e mata a gente.”
A quem estiver estranhando essa coisa de “atribuído a…” explico que na poesia popular essa questão de autoria é assim mesmo meio nebulosa, meio confusa, meio incerta. Para não errar, prefiro dizer que o verso é “atribuído a” do que fechar questão quanto ao autor.
Outro primor da síntese é uma estrofe que escutei por aí, da qual não sei o criador:
“O baralho tem quatro ás
Quatro dois e quatro três
Quatro quatro e quatro cinco
Quatro nove e quatro seis
Quatro oito e quatro sete
Quatro dez, quatro valete
Quatro dama e quatro reis.”
Não poderia concluir este registro sem falar em Rosil Cavalcanti, compositor genial de obras musicais como “Sebastiana”, “Tropeiros da Borborema”, e tantas outras. Basta dizer que Rosil foi aceito na Academia de Letras de Campina Grande apenas pelas suas letras, apenas pelas suas composições, sem nunca haver escrito um livro. A cadeira do qual foi patrono e fundador foi depois ocupada por meu pai, o jornalista e poeta Nilo Tavares, coisa que muito nos gratificou. Rosil Cavalcati é o autor de “Moxotó”, cuja letra é um verdadeiro e estudo sociológico da região que ele descreve na canção, com todas as suas características geográficas, econômicas, antropológicas e sociais:
“Você precisa conhecer uma terra boa
Você precisa conhecer o Moxotó
Pra ver o cabra entrar no mato encourado
Derrubar touro montado
Pegar cobra e dar um nó.
Lá tem vaqueiro que emborca no carquejo
Quebrando arapiraca
Tem sim senhor
Tem caçador que pega onça de mão
E sangra de faca
Tem sim senhor
Tem fazendeiro que morre e não sabe
Quantas reses tem
E tem morena de fala doce e amena
Que em outra terra não tem
Isso também tem…”
Oitenta palavras e toda a região passa como um filme, à sua frente! Genial.
Lagoa do Puiú, município de Ibimirim-PE, em pleno Moxotó, onde meus parentes ainda habitam, criam e cultivam.