Anágua, combinação e corpete.
Clotilde Tavares | 8 de maio de 2009Todo domingo de tarde me reúno com uns amigos no shoping para tomar cafezinho e conversar. Colocamos as novidades em dia e – como se dizia antigamente – discreteamos sobre assuntos variados, onde tudo é válido, onde pode tudo, e onde o papo é livre e enriquecedor porque todos respeitam a opinião uns dos outros.
Aí quando foi um dia desses, um dos rapazes me perguntou: “Clotilde, para que serve a anágua no traje feminino?” Aí, antes que eu explicasse, as três mulheres do grupo, eu incluída, relataram que não estava usando anágua, mas duas, eu incluída, disseram que usavam em determinadas ocasiões.
Criou-se então uma controvérsia sobre os termos “anágua” e “combinação” (que é outra peça do underware da mulher), e começou a surgir de tudo: califon, sutiã, corpete, caleçon, espartilho, anquinhas, cinta-ligas, cinturita, e por aí vai.
Então, meu caro leitor, prepare-se para esta viagem subterrânea pela intimidade feminina. E nada melhor do que começar lendo esse trecho do escritor Pedro Nava.
(…) “Para a sala de jantar dava um quarto devoluto onde nós brincávamos e onde certa vez recolheu-se uma das minhas tias em férias conjugais. O demônio do homem andava insuportável… Dela me veio a grande revelação. Que idade eu teria? Cinco? Seis? Mal fui notado no canto onde me divertia com velhos carretéis. A tia começou a vestir-se, na penumbra, ajudada pela Rosa. Primeiro apertou o colete “devant-droit” sobre a camisa que logo subiu, ao arrocho, mostrando as ligas de seda verde que prendiam as meias noturnas abrindo rendados sobre o nacarado da pele. A Rosa, por trás, atacava os cordões. Aperta mais, Rosa. A cintura se afinava e acentuava-se o 8 do talhe. Em cima desabrochava uma taça, transbordante de gelatina branca. Embaixo abriam-se os amplos, generosos flancos, desenhando curvas laterais, estufando globos posteriores, esculpindo, em negativo, o triângulo coxa-pente-coxa… Assim em menores ela colocou o chapéu e a “pleureuse” desceu como uma cascata sobre a brancura dos ombros de magnólia. Passou uma blusa rendada, depois de ter guarnecido a arraigada das mangas com aquelas meias-luas imperméaveis que recolhiam o suor das axilas. Eis senão quando a Rosa dá-lhe a primeira saia, rija de goma, que foi vestida de baixo para cima, como uma calça. Depois de presa na cintura, a negra abraçava as cadeiras da sinhá e vinha apertando de cima para baixo, para ajeitar os folhos, duma dureza de madeira. Manobra idêntica com a segunda anágua. Idem com a terceira. Na quarta eu, que olhava fascinado, quis ajudar a fazer, como a negra, o gesto de compor o vestuário. Abrançando d’alto a baixo. A tia olhou-me duramente, quis adivinhar, achou pelo menos insólito o meu propósito , entreabriu a porta e expulsou-me. (…) Pedro Nava, em Baú de Ossos (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 2ª. ed. 1973, p. 255)
Ah, meu caro leitor. Que escritor estupendo! Que trecho lindo, revelador, sensual, delicado, cinematográfico! Quem nunca passou por um momento desse na infância, de espreitar a intimidade dos adultos, principalmente aquela intimidade que normalmente ficava oculta, das roupas de baixo das mulheres, tantas e de formas tão variadas, feitas para ocultar aquilo que tanto queríamos ver?
E aí surge a resposta para a primeira pergunta dos nossos amigos que, em pleno século XXI, século da vulgarização da nudez e do sexo explícito mostrado na TV às dez da manhã ainda querem saber para que serve a anágua no traje feminino e ainda acendem os olhos quando rememoram o mistério das carnes ocultas e disfarçadas sob os panos.
Bem, a anágua serve para duas coisas, fundamentalmente: ocultar, e armar.
Funções contraditórias, essas. No trecho de Pedro Nava, citado acima, que reflete a vestimenta de 1910 (porque o autor nasceu em 1903 e disse ter uns cinco ou seis anos na época da “visão”) a anágua “dura de goma” armava as saias de cima, disfarçando os contornos do corpo de forma que não se pudesse adivinhar de que jeito seria a mulher. A acentuação da cintura pelo colete apertado tinha como objetivos erguer e fazer desabrochar o busto acima do decote, muito embora só os contornos se percebessem, porque decotes só eram aceitos em vestidos de noite. Mas da cintura para baixo tudo seria mistério, e não deixava perceber se a criatura tinha quadris fartos ou murchos, como eram as coxas e pernas, se finas ou grossas.
Quando eu era mocinha, na década de 1960, usávamos as anáguas ainda duras de goma para armar os vestidos, de largas saias rodadas e cintura no lugar. Lembro-me de que eu tinha umas duas ou três anáguas “de goma” e uma mais bonita, de renda, para vestir por
cima das outras, logo abaixo do vestido. Da cintura para cima, usava-se um “corpete”, que era um sutiã cuja parte sob os seios prolongava-se até a cintura. E ainda tinha a calcinha por baixo do monte de anáguas. Se a roupa fosse mais simples, com saia não tão rodada, a anágua era mais estreita, sem goma, e geralmente feta de um tecido sedoso com barra em renda.
O sutiã curto, ou seja, com apenas uma tira de tecido sob o busto abotoando nas costas, começava a se impor no traje feminino no final da década de 1950 mas era necessário vestir por cima do sutiã e da calcinha uma “combinação”, que era uma peça de seda como um vestidinho de alças. O objetivo era disfarçar os detalhes do sutiã, sobretudo se a roupa de cima era muito fina. Ainda não era de bom-tom, como hoje, revelar os detalhes da roupa de baixo.
Lembro-me do ano de 1960, no Colégio Alfredo Dantas, em Campina Grande, onde eu estudava a 2ª. série do curso ginasial, equivalente talvez à sexta série de hoje (eu tinha 12 anos), quando uma colega mais velha abriu a blusa e mostrou um sutiã deslumbrante, comprado em loja, e não aquele tipo que Mamãe costurava em casa, e que todo mundo usava. Foi um assanhamento de meninas olhando aquela maravilha, e não sosseguei então não fiz Mamãe comprar um para mim. Era um De Millus, e do primeiro sutiã a gente realmente nunca esquece.
Então, a equação era assim: corpete + calcinha + anáguas armadas + vestidos rodados; ou corpete + calcinha + anágua estreita + vestidos simples, sem roda; ou ainda sutiã + calcinha + combinação por cima de tudo + vestido.
Isso era nos anos 1950-1960 em Campina Grande, na Paraíba, e pode não conferir com o uso em outras plagas deste Brasil e de outros países, porque imagino que meus leitores sejam assim muito cosmopolitas e habitem em lugares muito diferentes.
Esse assunto, de roupa íntima feminina, dá “pano pras mangas” e eu ainda pretendo voltar a ele. Se for escrever aqui tudo o que o tema me suscita na imaginação, vira um livro e o meu caro leitor, apressado como sempre, me abandona sem perdão, para ler outros blogues mais curtos, mais sintéticos, menos prolixos, mais cheios de figuras.
Eu volto em outro dia porque ainda faltou falar de duas peças que me fascinam: o espartilho e a cinta-liga.
Enquanto isso, leia o excelente artigo sobre “Moda e Representação Social”, de Fátima Quintas, e este outro, de Edina Regina C. Panichi, que trata da construção textual na obra de Pedro Nava.
UPDATE: Minha gente, fui conferir o link do artigo da professora Fátima Quintas e encontrei problemas; então me perdoem, enquanto eu vasculho a internet à procura do lugar onde foi parar este maravilhoso texto, que eu queria muito que todo mundo lesse.
Este post é dedicado a João Batista – que me fez a pergunta “Para que serve a anágua?” e também ao Movimento Neo-Tibiri da Mesa Redonda.