Também quero ser fera
Clotilde Tavares | 29 de agosto de 2012Também quero ser fera: reflexões sobre o soneto Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos
por Clotilde Tavares
Comunicação apresentada em 29 de agosto de 2012, na Academia Paraibana de Letras, durante o evento Augusto das Letras, em João Pessoa, Paraíba.
A poesia de Augusto dos Anos me veio pela primeira vez na voz rouca e poderosa do meu pai, o jornalista e poeta Nilo Tavares. Eu devia ter uns doze ou treze anos, e nas noites sem televisão de uma Campina Grande que hoje só existe na minha memória, os versos de Augusto se elevavam no ar, aos meus ouvidos maravilhados.
Parece que ainda estou ouvindo a voz de papai:
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras…
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
E logo mais na frente, quando ele dizia a estrofe que terminava assim:
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza o meu irmão mais velho!
…todos ríamos porque sabíamos que Papai intencionalmente, dizia isso com ênfase para irritar meu tio Stelio, o irmão mais velho dele.
Papai sabia Augusto quase todo decorado e rapidamente eu também comecei a aprender os sonetos.
A poesia de Augusto dos Anjos sempre me deixou arrebatada pela linguagem complexa, que aos meus ouvidos adolescentes soava cheia de mistérios, como se fosse uma carta enigmática, um código a ser decifrado, um logogrifo estranho e misterioso cuja chave estaria em algum lugar do trajeto que os versos faziam a se espalharem pelo espaço, em sonoridade, em ritmos e rimas geniais.
A impressão que eu tinha era que aquele som atuava sobre mim como um alucinógeno, um gatilho para estados ampliados de consciência, um canto gregoriano que ia a qualquer momento me revelar a face de Deus, muito embora talvez eu não conseguisse apreender o sentido do que estava ouvindo.
Augusto dos Anjos sempre me pareceu um cara que vislumbrou o infinito e, voltando, tenta contar a história, muito embora muitas vezes a idéia lhe saia truncada pelo “molambo da língua paralítica”.
Lembro-me de outra leitura dessa época adolescente – Edgar Allan Poe, muito parecido com Augusto dos Anjos, na evocação do clima gótico, sombrio, dark. A Queda da Casa de Usher é um texto poético que bem poderia ter sido escrito por Augusto.
Mais do que a linguagem, a melodia e o ritmo que emanam dessa poesia, o entontecimento que nos acomete quando nos debruçamos à beira desse despenhadeiro, o chamado hipnótico das profundezas que entrevemos ou entreimaginamos quando ouvimos, por exemplo
Tome, Dr., esta tesoura, e… corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!
É assim que vejo a poesia de Augusto dos Anjos. Não são as palavras. É a energia que essas palavras produzem quando pronunciadas. É a perturbação que elas provocam na sopa quântica da qual fazemos parte, gerando ondas de choque que elevam essa energia a níveis tsunamicos, lançando a nossa mente numa espécie de espiral arco-voltaica, brilhante e relampejante, de nível em nível, até alturas inimagináveis, enquanto se sucedem os alucinantes decassílabos, edificando uma construção poética estranha e portentosa.
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Os termos exercem um fascínio sobre a percepção que se assemelha à empolgação do sexo, que vai num crescendo, sem se resolver, em busca de um clímax que sempre é trazido pela chave de ouro do soneto.
São como orgasmos líricos, uns mais intensos, outros menos intensos, como na vida; e orgasmos múltiplos, um se sobrepondo ao outro, também como na vida, nos poemas mais longos, como no Monólogo de Uma Sombra, do qual já disse trechos.
Experimentem esse soneto, e vejam este crescendo do qual estou falando.
Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Micro-organismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.
Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!…
Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!…
Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!
Mas… e os Versos Íntimos?
Há uns dez anos, dando um curso de teatro para jovens, em Monteiro, no Cariri paraibano, e onde havia jovens de outros municípios, daquele entorno, perguntei:
– Quem sabe decorado os Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos?
Mais da metade sabia.
Eram jovens, eram de teatro, eram paraibanos – sabiam!
Por que sabiam? Porque os Versos Íntimos estão impressos no DNA cultural de quem nasceu na Paraíba.
Eu aprendi Augusto com Papai, mas há toda uma geração de paraibanos que aprenderam Augusto com o poeta Ronaldo Cunha Lima, nos dois famosos programas de perguntas e respostas que o poeta fez, o primeiro na TV Tupi e o segundo na Rede Manchete, na década de 1970.
Transmitidos para todo o Brasil, em rede nacional de televisão, o programa e a performance de Ronaldo, que respondia às questões em versos, gerou curiosidade sobre a obra de Augusto e a divulgou mais do que qualquer programa de governo.
Posso afirmar que a geração nascida a partir dos anos 1960 teve esse contato precoce e intenso com Augusto dos Anjos, que passou a fazer parte do imaginário de toda uma geração esse crédito é inegavelmente do poeta Ronaldo.
Voltando ao curso de teatro: então eu escolhi um dos meninos e pedi para recitar.
Ele ergueu a mão, no gesto clássico dramático, de quem vai recitar com pompa e circunstância, e empostando a voz detonou o primeiro quarteto.
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Aí eu interrompi e perguntei:
– Ok, meu filho. Agora me diga: o que quer dizer isso?
E ele, com o encanto e a petulância de quem tem 17 anos respondeu:
– Ah, professora, não sei não. Mas é lindo, não é?
Preciso dizer mais alguma coisa?
Quem é que ouve ou lê Augusto dos Anjos e não fica doido por ele? Quem não se deixa seduzir e encantar por essa linguagem?
Mas os Versos Íntimos fogem um pouco da chamada linguagem ornamentada tão freqüente na obra do poeta. Tirando um formidável aqui e um inevitável acolá – e também a quimera, palavra antiga e que hoje muita gente não conhece – todas as palavras são de uso corrente e facilmente compreensíveis pelo leitor médio. O segredo desse poema está na força das imagens evocadas.
Os Versos Íntimos é como se o poeta visionário resolvesse dar um conselho pra todo mundo entender.
É um poema que em vez de contar, como por exemplo: “No tempo do meu pai…” ou “A minha ama de leite Guilhermina…”, mostra. É aí que reside a sua profunda força teatral que o afasta do tom épico dos poemas visionários. Enquanto a maioria dos poemas é referente ao eu, nos Versos Íntimos ele aconselha, incita, amedronta, ameaça o outro.
Os verbos são todos num tempo imperativo: Vês? Acostuma-te. Toma um fósforo. Apedreja. Escarra.
É uma peça poética de profunda solidão, onde o homem, após ver enterrado o seu último sonho, tem como companhia apenas a Ingratidão, a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa.
No interior, as pessoas dizem: “Não tenho medo da morte, tenho medo da Ingratidão.” – esta pantera, por certo parenta próxima dessa outra criatura felina, a Onça Caetana, que está aí rondando, nos esperando a todos, para rasgar nossas carnes com suas garras. Pois a Ingratidão, essa pantera, é pior, muito pior do que a Caetana.
Hoje em dia, ao caminhar na rua e conviver com os meus às vezes dessemelhantes em shoppings, cinemas, supermercados e seja lá onde for que a vida me leve a esse contato, assombrada com a vulgaridade, a cafajestice, a falta de educação e de noção, não posso deixar de recitar mentalmente o segundo quarteto, pensando que é isso mesmo, que aquilo que me espera é mesmo a lama da deterioração dos costumes, que preciso me acostumar a isso, que estou cercada de feras e de repente me dá uma vontade também de jogar para o alto meus hábitos e ultrapasssar pela direita, ligar bem alto o paredão de som, furar a fila, andar de salto alto no apartamento infernizando o vizinho de baixo, estacionar na vaga de deficientes, finalmente me rendendo, uma vez que vivo entre feras, a essa inevitável necessidade de também ser fera.
O “toma um fósforo, acende teu cigarro”, é o nosso “ser ou não ser, eis a questão”. Fui fumante muito tempo da minha vida e vez por outra, ao pedir a alguém para que acendesse o meu cigarro, nas noites sem horário dos bares da vida, lá vinha a criatura com a frase. E se eu fosse professora do ensino médio diria aos meus alunos que esse fósforo é uma imagem de luz, que o poeta usa para ajudar o seu interlocutor a compreender que “o beijo é a véspera do escarro e a mão que afaga é a mesma que apedreja.” Ou, quem sabe, o poeta não estava pensando nisso, apenas considerou a frase uma boa solução para rimar com escarro?
E chegamos ao segundo terceto. Qual é o soneto da língua portuguesa que tem como chave de ouro um “escarra nesta boca que te beija”?
Lembro de Ferreira Gullar a causar repulsa nas platéias com o poema A Bomba Suja, que começava assim:
“… introduzo na poesia / a palavra diarréia…”
Declamei uma vez esse poema em um evento, e foi curioso de ver a repulsa involuntária do auditório ao ouvir a frase. As expressões de asco e de nojo estavam estampadas nas faces das pessoas, elas recuavam, quase sem se sentir.
Mas décadas antes Augusto dos Anjos já havia escarrado nesta boca que te beija e se o décimo quarto verso do soneto hoje talvez não tenha mais esse efeito, é porque, de tão conhecido e repetido, já foi diluído o poder de choque da frase. Mas imaginem o que isso causou nas primeiras leituras e o que ainda causa quando alguém, por certo um não-paraibano – o escuta pela primeira vez.
Finalmente, toda a poesia de Augusto dos Anjos é de grande apelo ao recitativo, sonora, fácil, boa de recitar. Há autores que se prestam mais à leitura, do que ao recitativo, mas a poesia de Augusto é um presente para atores e declamadores.
E o mais curioso – e isso observo sempre que estou recitando Augusto frente a uma platéia é que quando passeio os olhos pelo publico sempre há alguém movendo os lábios, falando, recitando junto, acompanhando as os versos arrebatadores, recitando comigo.
Não quis aqui fazer uma análise profunda da poética de Augusto ou do soneto Versos Íntimos. Se você colocar no Google as palavras “versos íntimos analise”, o mecanismo de busca vai lhe fornecer cerca de 65.000 resultados, desde análises extremamente enriquecedoras e detalhadas de professores, literatos e intelectuais de nome até trabalhos escolares de crianças de treze anos, porque hoje em dia tudo que se escreve se publica na Internet.
No YouTube encontrei 155 videos diferentes de pessoas recitando o poema, de todas as formas que você puder imaginar. Eu mesma recito o poema no meu espetáculo TRAMAS, um recital de música e poesia que em breve estarei trazendo à capirttal paraibana. O que acrescentar, então, a tudo que já foi escrito, dito, imaginado sobre a obra do poeta?
Preferi falar como o coração sobre o poema e a poesia de Augusto.
Falar sobre como essa poesia me chegou, como me formou, como se entranhou na minha mente, na minha formação poética, na minha percepção estética da poesia em geral e do mundo ao meu redor. Falar sobre como essa poesia ainda me emociona e me bate depois de 50 anos recitando e repetindo esses sonetos.
Fica então aqui esta fala, mais depoimento do que critica ou analise literária, um discurso mais afetivo e emocional do que analítico, ou acadêmico. Depois que me aposentei da cátedra universitária fiquei assim meio iconoclasta, procurando abordagens mais espontâneas e inusitadas dos temas, cansada dos rigores do método.
Como diria o próprio Augusto, neste clip que fiz do poema As Cismas do Destino:
“Homem! por mais que a Ideia desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!
(…)
Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!
(…)
Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!
(…)
Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho…
É a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!
Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!. .. És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!