Uma visita real
Clotilde Tavares | 1 de abril de 2009No dia 10 de fevereiro de 1910 um grupo de príncipes abissínios em viagem pela Inglaterra solicitou oficialmente uma visita ao gigantesco navio almirante “Dreadnought”, o mais novo e poderoso navio de guerra da Marinha Real Inglesa, ancorado na baía de Weymouth, em Dorset. Os príncipes estavam acompanhados por um alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros e por um intérprete.
Cercada do maior protocolo, a visita teve recepção ao som de gaita de foles e oficiais envergando farda de gala; mas aconteceram algumas gafes, cometidas pelos ingleses, que em lugar da bandeira do país dos visitantes hastearam a bandeira e executaram o hino nacional de Zanzibar, em vez da Abissínia. Os convidados foram muito corteses e evitaram qualquer comentário; e mostraram sua admiração a todos os pormenores técnicos que o almirante inglês, em pessoa, lhes forneceu sobre a embarcação. Ao final da visita, enquanto os convidados esperavam o trem para regressarem a Londres, a multidão apinhou-se na estação ferroviária para ver os príncipes, todos negros, usando altos turbantes e vestidos em seus trajes exóticos e coloridos.
E era tudo mentira, meu caro leitor. Esse fato ocorreu realmente, mas tudo foi uma peça pregada à Marinha Real Inglesa por Horace Cole, um rico e ocioso membro da alta sociedade londrina, ajudado pelo amigo Adrian Woolf, irmão da escritora Virginia Woolf. Para preparar a farsa, contratou Willy Clarckson, maquilador da atriz Sarah Bernardt, para fazer a caracterização do grupo que contava ainda com a própria Virginia, fazendo um dos príncipes; o jogador de críquete Anthony Buxton; Duncan Grant, um artista; Guy Ridley, filho de um juiz. Adrian Woolf fazia o papel de intérprete do grupo e o próprio Horace Cole, envergando fraque e cartola, se anunciava como sendo alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
A audácia dos brincalhões foi espetacular. Na manhã da visita, Horace Cole dirigiu-se à estação de Paddington, em Londres, e pediu um comboio especial para levar os príncipes a Weymouth e um comitê para saudá-los na hora da partida. O chefe da estação reclamou do pedido feito à última hora mas a autoridade que emanava do “alto funcionário” ministerial era tamanha que organizou tudo a contento: reuniu os funcionários da estação para a saudação protocolar e mandou até colocar um tapete vermelho para que os príncipes subissem a bordo do trem.
Já havia sido enviado um telegrama falso em nome do Ministério ao almirante da frota, ordenando-lhe que dispensasse todas as atenções aos ilustres visitantes. Durante a visita, os príncipes recusaram toda a alimentação que lhes foi oferecida, alegando motivos religiosos; o verdadeiro motivo, porém, era porque poderiam estragar a maquilagem, onde todos usavam uma tinta escura no rosto e barbas e bigodes postiços. Para completar a caracterização, Cole mandou imprimir cartões de visita em uma língua africana e deu instruções para que seus colegas improvisassem uma língua própria para fazer perguntas e se dirigirem aos oficiais do navio, enquanto Adrian Woolf, o “intérprete”, traduzia o que os “príncipes” diziam para o inglês.
No trem de volta para Londres, a brincadeira chegou ao seu auge quando Cole explicou aos criados do vagão-restaurante que, segundo os hábitos abissínios, os príncipes podiam ser servidos apenas por pessoas que usassem luvas cinzentas de pele de cabrito. Quando o trem parou em Reading, um empregado foi enviado a comprar as luvas, para que os visitantes reais pudessem jantar.
Para se ter uma idéia da audácia do embuste, um dos militares de alta patente a bordo do navio era William Fisher, primo de Virginia e Adrian Woolf, que os conhecia muito bem; mas em nenhum momento notou que os príncipes eram seus primos. No dia seguinte, Cole enviou à imprensa o relato da história, acompanhado de uma foto do grupo e toda a Inglaterra se divertiu às custas da marinha inglesa.
Você pode ver essa foto no blog Modern Books and Manuscripts e também há outras informações na Wikipedia. O episódio ficou conhecido como “The Dreadnought Hoax” e os embusteiros não sofreram qualquer dano porque, de acordo com as leis inglesas eles não teriam cometido nenhum crime.
Nada melhor do que uma história dessas para comeorar o primeiro de abril e também porque considero saudável uma boa brincadeira para alegrar o ambiente. A conclusão é que ninguém escapa de ser enganado ou levado ao ridículo, nem mesmo a poderosa Marinha Real Inglesa, que já dominou os sete mares. Num caso assim, só resta relaxar, sorrir e torcer para não ser enganado outra vez.
Isto sim é que é performance! Você que é dramaturga pode definir a aproximação da coisa com o teatro, considerando o “texto”, figurinos, maquiagem, “direção”… O que importa em termos da “estética” contemporânea é o tipo de interferência, digamos, profunda ou, pelo menos, extensa na realidade de uma nação. Adorei!