Estratégias da memória II
Clotilde Tavares | 25 de maio de 2009Hoje vou continuar com o assunto da memória, porque no post de sábado eu esqueci (hahaha) de várias coisas que queria dizer, o que foi até bom, para o post não ficar muito comprido.
Lido muito com memória. Como sou atriz, uma das coisas que é preciso fazer no palco é ter o texto inteirinho na ponta da língua. Não somente o texto – as palavras – mas as intenções, os gestos, os olhares, a posição do corpo, o deslocamento no espaço, em suma, aquilo que chamamos “as marcas”. No teatro, todas essas coisas complementares, todo esse contexto ajuda a memorizar o texto em si, as palavras.
Outra coisa importantíssima em cima do palco é como lidar com o terror de todo ator, que é “o branco” – aquela situação em que você simplesmente não lembra de nada, esquece tudo. Penso que a única solução, o único remédio, é eliminar o estresse que é o maior causador dos “brancos”. Se você acha que não vai lembrar, não vai lembrar mesmo! “To play” tanto é “atuar”, como “jogar”, como “brincar”. Relaxar no palco, ver o trabalho do ator como uma doação amorosa da energia humana, integralmente a serviço da criação do personagem, não é uma coisa maravilhosa? Então como ficar nervoso com um fenômeno desse? O palco é uma festa, uma glória, um deslumbramento e o “branco” só surge quando a gente se estressa por querer impressionar, por colocar os objetivos do ator acima dos objetivos do personagem.
Vamos ver agora um outro caso de palco, o caso do declamador que, ao contrário do ator, não tem o auxílio do contexto. Aí, eu quando decoro algo para ser recitado diante de uma platéia, estabeleço comigo mesma algumas marcas e gestos mínimos, coisas que só eu sei, lugares pra onde olhar, e também me remeto ao formato da página onde o texto está escrito e à situação que o texto ocupa na página: página par, página ímpar, em cima, embaixo… São truques que todo artista tem e que não me incomodo de revelar. É assim que vou do começo ao fim, ao longo das cerca de 130 sextilhas do folheto de cordel O Pavão Misterioso, que sei todinho decorado. Além do “Pavão”, sei muita coisa decorado, mas se não houver uma constante repetição, a gente vai esquecendo. Por isso é preciso praticar.
Na poesia, elementos como a métrica e a rima falicitam a memorização e por isso as sagas e epopéias da Humanidade, no tempo da tradição oral, quando ainda não havia a escrita, eram formuladas em verso, para facilitar a memorização.
Conheço muitas pessoas que têm memória prodigiosa. A Rede Globo mostrou, no programa sobre a memória, o grande poeta popular Zé de Cazuza como exemplo. Mas conheço muita gente com memória igualmente prodigiosa. Meu pai, o jornalista e poeta Nilo Tavares, era uma dessas pessoas, recitando sonetos e mais sonetos, poemas e mais poemas, hora após hora. Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Emilio de Menezes e outros tantos dos seus poetas preferidos desfilavam na nossa frente enquanto ele, com sua voz forte e rouca para o homem tão pequeno que era, desfiava verso atrás de verso, quarteto atrás de quarteto, soneto atrás de soneto. Já velhinho, desmemoriado, sem conhecer ninguém, eu o ouvia falando baixinho. Ia devagar ao pé de sua cama e lá estava ele, repetindo seus sonetos preferidos, um depois do outro… Era como se estivesse desfiando o último fio da memória já deteriorada pela demência senil, a chamada “caduquice”, que o acometeu nos últimos dos seus 86 anos de vida.
O meu tio Cláudio Tavares, comunista histórico, vivendo em Recife durante toda a sua vida, também tinha esse tipo de memória, ainda melhor do que a de Papai. Ele decorou um dicionário inteiro, o “Dicionário da Fábula”, de Chompré. A pessoa abria o dicionário e dizia: página 86! E ele começava a dizer o que tinha escrito na página 86.
Uma ocasião tive uma doença infecciosa qualquer, uma inflamação de garganta. Fui ao médico, colega meu, da mesma turma. E ele então disse: “Mas Clotilde, isso que vc tem é a doença Fulana de Tal, que fica na página tal do livro de Veronesi!” referindo-se ao Tratado de Infectologia do professor Ricardo Veronesi, livro no qual estudamos no Curso de Medicina. Ele lembrava da página e da coluna do livro onde a doença era descrita. E tem mais: saiu recitando o texto do livro que se referia à descrição da doença como se o compêndio estivesse ali aberto na sua frente. Decoreba? Não, meu caro leitor: capacidade de memorizar e de ir buscar essa memória quando for preciso, coisa que não é todo mundo que tem.
As associações mnemônicas são outro tipo de estratégia que usamos para nos lembrarmos das coisas. Lembro-me das minhas aulas de Nutrição para o Curso Médico da UFRN onde eu recitava com facilidade o nome dos oito aminoácidos essenciais. Eu havia inventado três palavras com as três primeiras letras de cada um: TRIFENLIS TREVALMET ISOLEU. Então era fácil recitar para os alunos, bem naturalmente, como se não fossse decorado: Triptofano, Fenilalanina, Lisina, Treonina, Valina, Metionina, lsoleucina e Leucina…
Para as senha numéricas, inventei palavras parecidas com os números. Um é pum, dois é arroz, três é freguês, quatro é teatro, cinco é brinco, seis é reis, sete é valete, oito biscoito, nove é love e zero é nero.
Então uma senha por exemplo assim: 56923457 vira brinco reis love arroz fregues teatro brinco valete. Aí eu faço umas frases do tipo “o brinco dos reis love arroz, o freguês do teatro usa o brinco do valete”.
Já para aquela combinação de letras que fazem parte da senha, aquela de três letras, também formam frases. Lembro de que uma antiga minha, era AJG – digo aqui pois perdeu já a validade – na mesma época do sucesso da música de Los Hermanos. Então a senha virou Ana Julia Gostosa.
Parece doidice? Ora, meu caro leitor! Doidice é chegar no caixa eletrônico e não se lembrar da senha…