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Moda e geografia

Clotilde Tavares | 31 de maio de 2014

 

Ela pode!

Ela pode!

Eu tenho birra e impaciência com o atendimento em lojas. Não gosto que perguntem meu nome, porque não estou ali para fazer amizade e sim para fazer uma compra, Também me sinto estranha quando uma mocinha que eu nunca vi e provavelmente não vou ver de novo fica me tratando pelo meu primeiro nome, Clotilde-pra-lá, Clotilde-pra-cá. Algumas me chamam até de “Matilde”. Fazer o quê? Trato todo mundo com delicadeza, de Senhor e Senhora, até que a pessoa me dê cabimento. Se não dá, continuo na cerimônia. E gosto de ser tratada do mesmo modo. Mas agora, comprar qualquer coisa numa loja é iniciar um processo de relacionamento com o vendedor, um processo às vezes inusitado. Já falei sobre isto neste blog, aqui e aqui.

Terça feira que passou fui comprar uma sandália. Entro numa dessas franquias de calçados do shopping e a vendedora, por não ter em estoque sandália no meu número, me ofereceu uma bota. Cano longo, segundo ela, ficaria ótima para mim. 

Isso me lançou numa dúvida estética terrível, porque sempre achei que eu, com um metro e cinquenta e sessenta e nove quilos, pernas curtas e grossas, não fico muito bem com uma bota de cano longo. Como recusei, e ela insistiu, aleguei que queria mesmo uma sandália. A gentil vendedora usou então outro argumento. Você já sabe qual: o argumento de que a bota é o calçado mais apropriado para o inverno.

– Mas inverno aqui em Natal? –  pergunto eu.

E ela, didática:

– Bem, “Clotilde”, nós trabalhamos com as coleções de inverno porque nos baseamos nos lançamentos da última moda na Europa, e lá agora é inverno.

Então pirei de vez, caro leitor. Sempre pensei que nessa época fosse primavera na Europa, preparando um verão para o mês de julho, agosto, mais ou menos. Como já cheguei à conclusão de que não entendo de moda, devo estar desatualizada também quanto ao clima e à geografia.

Preciso com urgência me atualizar. Para os assuntos de moda, tenho a minha amiga Gladis Vivane e seu maravilhoso blog Salto Agulha. Mas para Geografia, ainda não sei a quem recorrer. Quem se habilita?

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Comportamento, Curiosidades, Humor, Sem categoria
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atendimento em lojas, Moda, padrão de atendimento, vendedor
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Retrospectiva 2013

Clotilde Tavares | 31 de dezembro de 2013

Hoje acaba 2013, ano cheio de realizações e alegrias entre amigos. Então, é preciso fazer um balanço e agradecer ao Universo pelo privilégio de continuar “viva e bulindo” aos 66 anos de idade – mas conservando diante do mundo o deslumbramento de uma criança pequena.

Em 2013,

– Escrevi duas peças de teatro, que foram montadas com sucesso, reafirmando minha parceria com a Casa da Ribeira e o diretor Henrique Fontes: “Os Perigos de Vitória” (março) e “A Estrada” (dezembro);

– Mais uma peça “A Farsa dos Opostos”, que estreou em 2012, e em 2013 circulou o país com o grupo Imbuaça, de Aracaju, dirigida por João Marcelino;

– Publiquei “Águas do Tempo”, livro escrito para a família Costa Silva/Rabelo, do Recife;

– Concluí a novela “O Monstro das Sete Bocas”, na mesma linha de “A Botija”, que sai em março de 2014;

– Em junho tornei-me, com muita honra, Cidadã Natalense, através de projeto do vereador Hugo Manso;

– Operei os olhinhos, e com a visão livre das cataratas da idade, aposentei de vez os óculos de grau que usava desde os 16 anos de idade;

– Dei cursos, oficinas e palestras – teatro, cultura popular e literatura foram meus temas;

– Li, escrevi, vi filmes, vi séries de TV, bordei, aprendi receitas novas, dormi bastante, engordei, enchi a varanda de plantas, viajei – pouco, mas com prazer – fiz novos amigos;

E o lado ruim, não tem? Só aconteceu coisa boa? – você pergunta. Tem o lado ruim sim, mas eu só contabilizo as coisas boas. As coisas ruins, aprendo com elas o que tinha de aprender e depois deleto!

Em 2014, o ano vai ser meu. Os projetos de teatro e de literatura já estão escritos e encaminhados. Nasci com Júpiter, Mercúrio e o Sol na Casa 11 e tenho Iansã na cabeça. Então não posso esperar nada menos do que muita coisa boa num ano regido por Júpiter, Xangô e Iansã. O Arcano do Tarô que preside o ano é Arcano VII – O Carro, em cujas rédeas venho praticando há anos o aprendizado do equilíbrio.

E você, que me acompanha, chegue junto porque 2014 promete!

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Eu, personagem.

Clotilde Tavares | 11 de setembro de 2013
Rosenda von Kraken, em 1993.

Rosenda von Kraken, em 1993.

Eu sou atriz. Em cima do palco já fui muita gente. Fui, por exemplo, Estragon. Fui Rosenda von Kraken, Carlota, Antonieta, Sílvia. Fui Gipsy, personagem que inventei e que saiu do palco do teatro para a rua e para os livros. Fui também um cara super-divertido, o Coronel Olegário, Corno e Latifundiário, que atirava de revólver e cantava rock and roll. Fui mais um monte de gente que nem me lembro mais. Mas a experiência de ser um personagem eu mesma, interpretada por outra pessoa, é novidade para mim.

Gipsy, no ar de 1996 até hoje.

Gipsy, no ar de 1996 até hoje.

Pois as professoras da Escola Ulisses de Góis, em Natal-RN, no desfile comemorativo da Semana da Pátria no dia 5 de setembro último, organizaram um “pelotão” representando autores do Rio Grande do Norte, com os alunos caracterizados como o escritor.

E eu estava lá, representada pela linda Rebeca, aluna da escola, que encarnou com graça e simpatia (e uma beleza que não tenho nem nunca tive) a minha desataviada pessoa.

Uma experiência a mais, numa fase da vida em que é difícil acontecer uma novidade.

Eu adorei.

A aluna Sayonara, de preto, cinto dourado e mão na cintura, encarnando esta escriba que vos tecla.

A aluna Rebeca, de preto, cinto dourado e mão na cintura, encarnando esta escriba que vos tecla.

O original!

 

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Província Submersa

Clotilde Tavares | 9 de setembro de 2013

Hoje trago para você a notícia de um livro: “Província Submersa”, de Octacílio Alecrim, publicado numa edição conjunta do Instituto Pró-Memória de Macaíba/RN e Senado Federal. É uma segunda edição, com 278 páginas; a primeira saiu em 1957, como edição especial do Proust Clube do Brasil, em tiragem limitada e fora de comércio.

Sobre o autor, o primoroso e elucidativo texto do jornalista Vicente Serejo, que abre esta a edição, traça com maestria o perfil deste que, nascido em Macaíba, cidade que fica pertinho de Natal, em 1906 e falecido no Rio de Janeiro em 1962, foi “talvez o maior proustiano no Brasil do seu tempo, ao longo das décadas de quarenta e cinqüenta.” E continua: “Sua importância não se consagra apenas nos textos que escreve e publica, mas na grande presença nas bibliografias dos estudos impressionistas e acadêmicos sobre o romance de Marcel Proust.”

Mas o bom mesmo é este livro “Província Submersa”, um delicioso relato da infância e juventude do autor, que extrapola o simples memorialismo e, nas entrelinhas dos fatos pessoais, retrata a história sócio-cultural e econômica daquela região, nas primeiras décadas do século XX, quando se ia de Macaíba a Natal de barca, pelo rio Jundiaí, que afluía ao Potengi. São histórias de famílias, descrição de tipos populares, relatos de brincadeiras, códigos de comportamento e vida social, descrições tão reais e detalhadas que parecemos estar vivendo junto com o autor os fatos que descreve.

Octacílio Alecrim (1906-1968)

Octacílio Alecrim (1906-1968)

E isso sem abrir mão nem por um instante da prosa elegante, da sintaxe escorreita, das imagens vívidas, tudo denotando um memorialista completo, bem no espírito da “Recherche…” de Proust, de quem Octacílio Alecrim foi, como já falei, um dos mais competentes exegetas. É um livro que agrada ao intelectual, ao estudioso, que se deleita com a erudição demonstrada, os achados estilísticos; e o leitor comum também encontra aí a história de um menino, um menino como os outros, nascido e criado no interior, tal como o Carlinhos de Zé Lins, e com ele se identifica, pois todos nós fomos um dia meninos e meninas, mergulhados na doce inocência da infância, e sentimos, através das memórias de Otacílio Alecrim, o cheiro suave de lavanda que emanava do colo da nossa mãe, o gosto do leite morno tomado ao pé da vaca em caneca de flandres, o contato áspero do tropical agajota do terno do pai, a feira, as cavalhadas, as histórias ouvidas da boca das empregadas e amas, o mistério das noites estreladas de um infância onde não havia shopping-centers, nem computador, nem videogames.

Um livro para se ler devagar, saboreando, degustando, relembrando e reconhecendo nesta “Província Submersa”, de Octacílio Alecrim, além do seu alto valor literário, uma fonte abundante de cultura e de prazer.

Rua da Conceição. Macaíba, 1898.

Rua da Conceição. Macaíba, 1898

Nesta quinta-feira, 12 de setembro, estarei falando sobre este livro e este autor na Academia Macaibense de Letras, às 15 horas, no sessão comemorativa de aniversário da Instituição. A reunião será no Pax Clube de Macaíba.   

 

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Os antigos contavam

Clotilde Tavares | 7 de setembro de 2013
Moças. Anos 1930. Arquivo de família.

Moças. Anos 1930. Arquivo de família.

Os antigos contavam:

A moça gosta de fazer piadas, de pregar peças, de enganar os outros. Faz isso por diversão, e para chamar a atenção.

Um dia o empregado da fazenda mata uma cobra e atira o bicho morto para um canto da cerca. A moça vai, escondido de todos, carrega a cobra morta para dentro de casa, bota dentro da rede, faz que vai se deitar e começa o alarido: “Ai ai ai, me acudam, uma cobra, uma cobra!” Todos correm, lá está ela aos gritos, descabelada, mostrando a cobra na rede. Os outros com cuidado se aproximam e veem logo que o animal não se mexe, está morto, e o empregado diz lá de fora: “É a cobra que eu matei hoje de manhã.” A mãe briga com a moça. “Isso não se faz, assustando a família desse jeito.”

A cobra é retirada, a moça fica rindo-se pelos cantos do susto que pregou em todos. Vai na cozinha, bebe um copo de água, dá um volta pela casa, pega o bordado e vai sentar na varanda, o casamento está perto, o noivo mora longe e ela se distrai bordando o enxoval.

Mais tarde, sente a vista cansada e resolve se deitar um pouco. A família entregue às suas tarefas, a casa está em sossego. Tão logo entra no quarto, e vai para a rede, começa tudo outra vez: “Ai ai ai, me acudam, me socorram, uma cobra, uma cobra!” A mãe e a tia na cozinha, o empregado na horta, a velha com o cachimbo na boca lá no tanque lavando roupa, ninguém se importa muito: é a moça de novo com suas brincadeiras. Como ninguém dá atenção, ela se cala.

Mais tarde a família a encontra na rede, dura, um fio de saliva a escorrer pelo canto da boca, os olhos virados, a língua escura. Entre os seios virgens, a negra jararaca ressona, tranquila, livre do veneno.

Aí os antigos dizem que as cobras se casam para a vida inteira. Quando a fêmea morre, o macho sente, e vem atrás dela, pelo cheiro. Encontra o rastro, encontra a rede, encontra a moça.

Essa é a história.

 

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conto popular, folclore sobre cobra, histórias de cobra, lenda nordestina, Memória, tradição
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10 coisas que faço depois dos 60 anos

Clotilde Tavares | 6 de setembro de 2013

clotilde_pode

Nesta semana que passou, uma grande amiga completou sessenta anos, e mandou um e-mail para mim onde dizia: “Fui dormir com 59 anos e acordei com 60”. Depois, mostrava-se um pouco apreensiva com a realidade da chamada “terceira-idade”, dizendo que a menininha saltitante de cachos nos cabelos ainda existia em algum lugar dentro dela, mas em outros momentos o que aparecia era a sexagenária, não tão saltitante assim. E eu, que já pertenço a essa idade “não tão saltitante assim” desde 2007, saudei-a com um sonoro “Bem vinda ao clube!”

Bem-vinda, querida, ao clube da meia-entrada em cinemas, museus e assemelhados – em alguns a entrada é gratuita. Isso faz toda a diferença quando você vai, por exemplo, assistir a um show ou peça de teatro, onde os outros pagam duzentos ou trezentos reais – como o show de Caetano Veloso em junho passado no teatro Riachuelo – e paga apenas a metade!

Bem-vinda a uma população que cresce a cada dia, e que fica cada vez mais jovem, de tal forma que já se está pensando numa chamada “quarta idade”, que seria a partir dos oitenta anos. Bem-vinda às muitas vantagens, por exemplo, na hora de uma demanda judicial, e a tratamento preferencial em várias instâncias da vida social. Bem-vinda ao direito de não levar desaforo pra casa, porque quem agride um idoso o discrimina duplamente!

Digo e repito: é muito melhor ter 60 anos do que ter 56, 57 ou 58, por exemplo. Mas é preciso ficar atento e não abrir mão de uma alimentação equilibrada, exercício físico, e estar sempre buscando novas e diferentes atividades porque é isso que mantém o cérebro ativo e livre das doenças degenerativas. Eu mesma vivo jogando Sodoku, que é aquele joguinho japonês com números; e CandyCrush, que é um joguinho que baixei no tablet e que exige atenção e capacidade de estratégia. Escrevo, me comunico, aprendi a tocar piano por partitura há dois anos e venho praticando. Toco muito mal, mas o objetivo não é ser concertista: é fazer o cérebro aprender uma atividade nova, uma nova forma de estabelecer sinapses. Com tudo isso, vou por aqui, sendo feliz e driblando o Alzheimer.

Leia direitinho o estatuto do idoso, que pode ser encontrado na Internet, e vai ver que é melhor ser a mulher de agora, sábia e experiente, do que a boba menininha dos cachinhos. A idade acrescenta experiência, calma, tranqüilidade, satisfação e a possibilidade de desfrutar da vida de uma forma suave e sem pressa que os jovens contraditoriamente não têm, mesmo tendo teoricamente a vida toda diante de si.

Não sei se o que digo aqui serve para todo mundo, mas vou listar dez hábitos que para mim fazem grande diferença nessa tal de terceira idade:

1 – Atividade física pelo menos três vezes por semana. Odeio academia, e por isso contratei um personal trainer. A despesa vale a pena.

2 – Estou deixando de comer glúten, que está presente no trigo, aveia, centeio, cevada e malte e em um montão de alimentos industrializados. Fico mais leve e sem aquela sensação de barriga inchada.

3 – Também só tomo leite sem lactose, e fervido, para desdobrar a caseína do leite de vaca, uma proteína pesada e que me faz mal.

4 – Procuro sempre comer menos do que a minha gulodice – que é grande. Mesmo assim, é bom de vez em quando enfiar o pé na jaca e fazer uma extravagancia, senão a vida fica sem graça.

5 – Faço terapia uma vez por semana, com psicólogo, pra não aborrecer família e amigos com minhas questões.

6 – Tenho hora certa pra comer, dormir e trabalhar (refiro-me a escrever, pois sempre tenho alguma encomenda, de livro ou peça de teatro).

7 – Faço intervalos no trabalho para descansar, me alongar, estrar as pernas e olhar a paisagem.

8 – Tomo diariamente complexos vitamínicos e remédio para o colesterol. Nenhuma outra medicação.

9 – Faço check-ups rigorosos todo ano para surpreender a doença antes que ela me surpreenda.

10, e a mais importante: – Não me meto na vida dos outros e não permito que ninguém se meta na minha.

 

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Natal cidade querida

Clotilde Tavares | 7 de junho de 2013

DISCURSO PROFERIDO PELA ESCRITORA CLOTILDE TAVARES NA CÂMARA MUNICIPAL DE NATAL POR OCASIÃO DO RECEBIMENTO DO TÍTULO DE CIDADÃ NATALENSE, NO DIA 6 DE JUNHO DE 2013.

Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal de Natal, em nome do qual saúdo as demais autoridades presentes.

Exmo. Sr. Vereador Hugo Manso, autor da proposta que me concede este título, meu querido amigo.

Amigos, companheiros de trabalho, meus professores, meus alunos, artistas, escritores, familiares,

Senhoras, Senhores,

Apesar do ambiente ser formal, eu não quero aqui fazer um discurso formal, um discurso de terno e gravata.

O que quero agora é contar a vocês uma história de amor. A história de um caso de amor que mantenho com esta cidade há mais de quarenta anos.

Tudo começou em 1970 quando aqui cheguei, vinda de Campina Grande, para estudar Medicina. Era o meu primeiro ano longe de casa, morando numa pensão na rua Voluntários da Pátria, ali perto da Santa Cruz da Bica, quase no Baldo. Sem amigos, sem família, logo nos primeiros dias tive que ir ao Hospital das Clínicas tirar um atestado médico e me vi, de repente, suspensa entre o céu e o mar na balaustrada da avenida Getúlio Vargas. Ali, às duas e meia da tarde, envolvida por aquela sinfonia azul que ia do mar de safira ao céu turquesa, naquele instante, capturada pela beleza, me apaixonei por esta terra.

Esses primeiros anos foram tempos heróicos. Muitas vezes simplesmente não havia dinheiro, e como matar a fome que meu corpo jovem e saudável manifestava quando o que eu tinha dava apenas para uma grapete e um pão doce, que deviam me sustentar por vinte e quatro horas? Mas era essa mesma juventude que me fazia ir e voltar a pé todos os dias da pensão, na rua Voluntários da Pátria ao Hospital das Clínicas, e parecia tão perto!

Ao lado das tarefas da faculdade, dos estudos, dos plantões, e aulas práticas, comecei a me ambientar na vida cultural da cidade. Iniciei no teatro em 1971, com o Grupo Alavanca de Teatro, tendo à frente Racine Santos, que ensaiava nos altos do Teatro de Amadores de Natal, na rua Voluntários da Pátria, onde também conheci e convivi com Sandoval Wanderley. Comecei também a estudar música – outro grande sonho -, na Escola de Música do Rio Grande do Norte, onde fui aluna de violoncelo do professor Piero Severi e integrei por um ano o naipe das cordas da Orquestra Sinfônica, sob a regência do maestro Clóvis Pereira. Mas a Faculdade me tomava todo o tempo e o teatro e a música precisaram ser deixados de lado.

Comecei a conhecer as pessoas e a fazer amizades, pessoas de teatro, gente da música, os colegas de faculdade, e os meus mestres na Medicina: Dr. Hiram Diogo Fernandes, Dr. Gilberto Wanderley, Dra. Ivalda Santana, Dr. Celso Matias, Dr. Onofre Junior, Dr. Heriberto Bezerra, Dr. Eudes Moura… Os nomes desses professores vêm à minha mente quando evoco aqueles que contribuíram decisivamente para a minha formação médica e também como ser humano e ressalto ainda, com destaque, o nome do Dr. Lauro Gonçalves Bezerra, que me abriu caminhos e horizontes, com quem trabalhei diariamente por mais de dez anos, na dura lide da saúde pública, num tempo em que não existia SUS nem PSF, subindo e descendo as escorregadias ladeiras da rua do Motor e convivendo com a comunidade de Brasília Teimosa. Quero também prestar minha homenagem de imorredoura saudade à Dra. Giselda Trigueiro, que foi para mim uma inspiração e exemplo a ser imitado como médica e cientista, pelas suas aulas magistrais e conduta humana com o paciente mas também como mulher bonita e elegante, como pessoa à frente do seu tempo, com inteligência superior e humanidade cativante, e que me distinguiu com a sua amizade.

Nos últimos anos de faculdade, já morando em Areia Preta, na rua Pinto Martins, eu me encantava todo dia com a visão mais querida desta cidade: a da balaustrada da Avenida Getulio Vargas, palco do meu primeiro encontro amoroso com Natal. Indo e voltando diariamente para o Hospital das Clínicas, aquele azul me alimentava e me envolvia e a paisagem deslumbrante atuava como um energético, me acalmava, me alimentava, me revigorava, recarregava minhas baterias.

A intenção era me formar em Medicina e voltar para Campina Grande, mas quem disse que eu pude? Em 1975, ao colar grau, Natal já havia me capturado com seu perfume, seu encanto, seu céu de brigadeiro e o carinho dos amigos que aqui eu já tinha.

Quando fui fazer mestrado no Recife, onde fiquei nos anos de 1978 e 1979, passei esses dois anos sem vir a Natal – era grande o medo que tinha de vir passar um final de semana aqui e não conseguir mais voltar para o Recife.

Nesta cidade querida vi correrem os anos mais belos da minha vida. Como professora do antigo Departamento de Saúde Coletiva e Nutrição da UFRN batalhei pela Saúde Pública, especificamente a causa do aleitamento materno e da nutrição infantil por anos, e produzi trabalhos dos quais ainda hoje me orgulho. Foram quase vinte anos de militância ininterrupta nessa área, ao lado do Dr. Lauro Bezerra, pioneiro do ensino da Nutrição no Rio Grande do Norte. E enquanto a vida ia tocando seu curso a música, o teatro, e a literatura continuavam ocupando os interstícios entre os estudos e trabalhos na área da saúde.

Alguém aí da platéia que me conhece há muito tempo – talvez até o vereador que me deu esse título – deve estar querendo me perguntar:

– Mas Clotilde, e a boemia? As noitadas? Vai passar por cima de tudo isso?

Eu respondo:

– Como poderia? Até os quarenta anos de idade fui uma grande boêmia, e aproveitei bastante a vida, minha gente! Conhecia todos os bares e botecos dessa cidade, da Tenda do Cigano ao Café Nice, do Chernobyl ao Tirraguso, do Mintchura ao Teco-Teco, do Equilibrista à Barraca de Santiago. Fui sócia-fundadora da República Independente da Praia dos Artistas; no verão, era habitante do Território Livre da Redinha, e sócia-foliã-honorária da Banda Gália, uma das maiores experiências anarco-lírico-carnavalescas que essa cidade já teve, junto com Olinto Rocha, Carlos Piru, Eugenio Cunha, Márcio Capriglione, Julinho Rezende, Zé Avelino, Sergio Dieb, Diva Cunha… E quando o clarim rompia a primeira nota na noite estrelada de Natal eu já caía dentro, no frevo, usando as fantasias mais loucas que alguém possa imaginar. Ah, e lembro dos meus queridos amigos dessa época, que já se foram, já se encantaram: Chico Miséria, André de Melo Lima, Sergio Dieb, Kiria Eleison, Malu Aguiar, Olinto Rocha. Quanta saudade!

Foram anos muito loucos! Foram anos experimentando o perigo, a alucinação da velocidade, os paraísos artificiais, a embriaguez dos sentidos. Até a última gota, esgotei essa tulipa dourada do Prazer, sorvida sem culpa, sem medo, e sem limite. Esgotadas as taças, aprendi que é preciso experimentar de tudo, mas tudo tem limite. E aos quarenta anos, decretei encerrada minha carreira na boemia.

A vida me pedia uma mudança. A Medicina, agora concentrada na docência e na pesquisa na área de Saúde Pública, preenchia uma parte do meu dia, dos meus interesses, mas eu sentia sempre, vindo do mais fundo das minhas entranhas, o chamado da Arte. E foi assim que o teatro voltou à minha vida em 1990, a partir de um encontro com Marcos Bulhões, hoje doutor em teatro pela USP e professor daquela Universidade. Naquele, tempo, Bulhões era ator da Stabanada Companhia de Teatro e estava selecionando atores para um espetáculo.

Foi o início de uma parceria diária militando na cena teatral da cidade. Fizemos, Bulhões e eu, muitos espetáculos, performances, intervenções cênicas, demos oficinas, cursos, éramos “duas-almas-num-corpo-só”. Como não havia espaço na minha vida para duas coisas tão absorventes, considerei que já havia dedicado mais de vinte anos à Medicina, e que agora era hora de voltar às artes. Eu tinha 42 anos de idade, E não tive medo de mudar. Transferi-me então para o Departamento de Artes da UFRN, onde passei a ensinar Folclore Brasileiro e disciplinas ligadas ao teatro.

Foi nessa época, a partir de 1990, que minha carreira de escritora começou a se encaminhar. Fui colunista semanal por anos do Jornal de Natal, Jornal de Hoje, O Mossoroense, Revista RN-Econômico, Revista da Telepesquisa, e na Tribuna do Norte, onde escrevi por dez anos, todos os domingos.

Os livros começam a aparecer a partir de 1987 e já são tantos! Livros, artigos, peças de teatro, folhetos de cordel… Entre todos eles, o meu livro que mais gosto: “Natal a Noiva do Sol”, adotado nas escolas da cidade, com o título emprestado da obra de Cascudo, quando ele diz as palavras imortais que eu sempre assino embaixo:

“Natal, Noiva do Sol, minha cidade querida, deu-me o que sempre esperei: a tranquilidade do espírito, a paz do coração, o amor pelas coisas humildes do mundo, no meio das quais sempre vivi. (…)”

O que dizer mais, de uma vida tão rica e tão produtiva, construída neste chão natalense, respirando o mesmo ar que Câmara Cascudo respirou, contemplando o mar aberto em navegos que Zila Mamede contemplou, e ouvindo as romanceiras tão caras aos ouvidos do mestre Deífilo Gurgel?

Aqui desfruto de perenes e sólidas amizades, como meus companheiros do Rotary e minha amiga quase-irmã Aldanira Barreto, em nome da qual saúdo o rotarismo natalense.

Os que foram meus alunos e hoje estão ocupando cargos importantes, e quando cruzo com eles em algum evento, blindados e defendidos por uma corte de assessores, se destacam do grupo quando me veem e me cumprimentam com aquele que é o meu maior título:

“ – Professora, que bom ver a Sra!…”

Meus parceiros na batalha da cultura: Henrique Fontes e a Casa da Ribeira, João Marcelino, Marcílio Amorim e o Elenco Mosh, Carlos Fialho e a editora Jovens Escribas. A homenagem a estes grandes amigos que já se foram: Sandoval Wanderley, Chico Vila, Jaime Lúcio, Lenício Queiroga, Fernando Ataíde, Carlos Nereu, todos agora fazendo teatro na Eternidade; e Luís Carlos Guimarães, Bosco Lopes, Black-Out, Celso da Silveira, sentados numa nuvem, fazendo versos…

Amigos? Impossível citar! Um ano não seria suficiente para esgotar a lista das amizades, meu maior patrimônio nesta terra.

Minha família querida:

Meu filho mais velho, Rômulo Tavares, publicitário, músico, compositor, brilhante em tudo o que faz, um homem bom e decente, com raízes plantadas aqui e que me continua através dos meus dois netos: Isabela Albuquerque Tavares, aluna do curso de Direito, e Marcelo Rodrigues Tavares, ainda adolescente. As mães dos meus netos, Viviane Albuquerque, psicóloga, e Telma Rodrigues, professora de teatro.

Minha filha Ana Morena Tavares Ramos, empresária, contrabaixista, cantora, atriz, e tudo o mais que ela quiser ser porque é talentosa e linda, e me enche de orgulho a cada dia pelo que é e pelo que faz. Junto com meu querido genro Anderson Foca ela lidera um dos empreendimentos culturais de maior sucesso nesta terra: o Combo Cultural do Sol, e movimentam a cena da cidade em eventos de porte, dois deles em parceria com a Casa da Ribeira: o Circuito Ribeira e a Virada Natal.

Ligados a mim por laços familiares indiretos, uma vez que são sogros da minha filha, o casal José Freitas/Lucidete, paraenses aqui radicados, também são minha família nesta cidade.

Ao longo dessa fala eu citei muitos nomes. Nos discursos, as pessoas sempre dizem que não vão citar nomes para não correr o risco de esquecer alguém. Mas eu não me importo. Eu quero correr esse risco, porque enquanto vou desfiando essas recordações os nomes vêm vindo à minha memória e é impossível deixar de citá-los, mesmo sabendo que não vou poder citá-los todos.

E também há aqueles que fazem parte da minha vida e que eu não sei os nomes, os natalenses anônimos, cidadãos desta cidade, a moça que me atende no caixa da loja, o gari que recolhe o lixo, o carteiro, a telefonista que está do outro lado do fio, o frentista que abastece meu carro, homens e mulheres que fazem parte da minha vida e que agora me recebem como conterrâneos e cabem todos dentro do meu coração.

O escritor Nei Leandro de Castro uma vez escreveu:

“Clotilde Tavares é a fada madrinha e a fada zangada do cotidiano. Ela protege Natal com uma varinha de condão e um porrete feito de madeira que cupim não rói.”

É como fada madrinha que me agora me dirijo, nesta casa que é do povo, aos seus representantes, os nobres vereadores que aqui fazem seu trabalho, principalmente ao vereador Hugo Manso, para agradecer esta homenagem, que para mim é como uma flor rara, que regarei com a minha gratidão, e que agora segue embelezando minha vida.

Mas também é como fada zangada do cotidiano que quero deixar aqui o meu primeiro recado como natalense legítima:

– Senhores vereadores! Tomem conta da minha cidade! Fiscalizem os governantes para ver se eles estão se comportando. Ajudem a melhorar a vida do cidadão propondo na área da saúde, da educação, da segurança, do transporte. E tratem a cultura com o respeito que ela merece, e não como diversão de final de semana. Cuidem da minha cidade! Eu estou de olho em vocês.

Minha gente!

Eu amo Natal!

Amo o deslumbramento de mergulhar nesse azul e nesse ouro que é a atmosfera da cidade. Azul do céu de brigadeiro, ouro do Sol e das acácias que ornamentam as avenidas.

Amo a carícia do vento, e o perfume do mato ali nas dunas da Via Costeira.

Amo o bulício do Alecrim no dia da feira, as agitações noturnas em Ponta Negra, os saraus nas livrarias, as conversas nos corredores dos shoppings, as lentas visitas aos sebos no centro da cidade.

Amo essa magia, esse encantamento que torna esta cidade especial entre todas as cidades do mundo. É alguma coisa imponderável, uma brisa, um sopro angélico, um murmúrio de fadas, uma sensação de dia nascendo a toda hora, quando a gente olha para este céu tão sem nuvens, tão luminoso.

Amo as dunas suaves e recortadas sobre o céu da tarde, quando as contemplo da minha varanda, relembrando a sensual anatomia dos corpos femininos.

Amo o Potengi à tardinha, recebendo o sol poente, vermelho e preguiçoso, que se aninha nos braços verdes e escuros do rio.

Amo o hospitaleiro povo natalense, agora também oficialmente meu povo, recebendo quem vem de fora com a mesa posta e a rede armada, o pirão de peixe quentinho e saboroso, o suco de mangaba, a carne de sol.

Porque em Natal quem mora aqui vive rindo à toa porque sabe que desfruta do privilégio de viver nesta esquina do continente, terra de sol, perfume e alegria.

MUITO OBRIGADA!

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cidadania, Natal, título
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Também quero ser fera

Clotilde Tavares | 29 de agosto de 2012

Também quero ser fera: reflexões sobre o soneto Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos

por Clotilde Tavares

Comunicação apresentada em 29 de agosto de 2012, na Academia Paraibana de Letras, durante o evento Augusto das Letras, em João Pessoa, Paraíba.


A poesia de Augusto dos Anos me veio pela primeira vez na voz rouca e poderosa do meu pai, o jornalista e poeta Nilo Tavares. Eu devia ter uns doze ou treze anos, e nas noites sem televisão de uma Campina Grande que hoje só existe na minha memória, os versos de Augusto se elevavam no ar, aos meus ouvidos maravilhados.

Parece que ainda estou ouvindo a voz de papai:

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,

Do cosmopolitismo das moneras…

Pólipo de recônditas reentrâncias,

Larva de caos telúrico, procedo

Da escuridão do cósmico segredo,

Da substância de todas as substâncias!

E logo mais na frente, quando ele dizia a estrofe que terminava assim:

Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques

E o animal inferior que urra nos bosques

É com certeza o meu irmão mais velho!

…todos ríamos porque sabíamos que Papai intencionalmente, dizia isso com ênfase para irritar meu tio Stelio, o irmão mais velho dele.

Papai sabia Augusto quase todo decorado e rapidamente eu também comecei a aprender os sonetos.

A poesia de Augusto dos Anjos sempre me deixou arrebatada pela linguagem complexa, que aos meus ouvidos adolescentes soava cheia de mistérios, como se fosse uma carta enigmática, um código a ser decifrado, um logogrifo estranho e misterioso cuja chave estaria em algum lugar do trajeto que os versos faziam a se espalharem pelo espaço, em sonoridade, em ritmos e rimas geniais.

A impressão que eu tinha era que aquele som atuava sobre mim como um alucinógeno, um gatilho para estados ampliados de consciência, um canto gregoriano que ia a qualquer momento me revelar a face de Deus, muito embora talvez eu não conseguisse apreender o sentido do que estava ouvindo.

Augusto dos Anjos sempre me pareceu um cara que vislumbrou o infinito e, voltando, tenta contar a história, muito embora muitas vezes a idéia lhe saia truncada pelo “molambo da língua paralítica”.

Lembro-me de outra leitura dessa época adolescente – Edgar Allan Poe, muito parecido com Augusto dos Anjos, na evocação do clima gótico, sombrio, dark. A Queda da Casa de Usher é um texto poético que bem poderia ter sido escrito por Augusto.

Mais do que a linguagem, a melodia e o ritmo que emanam dessa poesia, o entontecimento que nos acomete quando nos debruçamos à beira desse despenhadeiro, o chamado hipnótico das profundezas que entrevemos ou entreimaginamos quando ouvimos, por exemplo

Tome, Dr., esta tesoura, e… corte

Minha singularíssima pessoa.

Que importa a mim que a bicharia roa

Todo o meu coração, depois da morte?!

 

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!

Também, das diatomáceas da lagoa

A criptógama cápsula se esbroa

Ao contato de bronca destra forte!

 

Dissolva-se, portanto, minha vida

Igualmente a uma célula caída

Na aberração de um óvulo infecundo;

 

Mas o agregado abstrato das saudades

Fique batendo nas perpétuas grades

Do último verso que eu fizer no mundo!

 

É assim que vejo a poesia de Augusto dos Anjos. Não são as palavras. É a energia que essas palavras produzem quando pronunciadas. É a perturbação que elas provocam na sopa quântica da qual fazemos parte, gerando ondas de choque que elevam essa energia a níveis tsunamicos, lançando a nossa mente numa espécie de espiral arco-voltaica, brilhante e relampejante, de nível em nível, até alturas inimagináveis, enquanto se sucedem os alucinantes decassílabos, edificando uma construção poética estranha e portentosa.

Eu, filho do carbono e do amoníaco,

Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro, desde a epigênesis da infância,

A influência má dos signos do zodíaco.

 

Profundíssimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância…

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.

 

Já o verme — este operário das ruínas —

Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

 

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há-de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra!

 

Os termos exercem um fascínio sobre a percepção que se assemelha à empolgação do sexo, que vai num crescendo, sem se resolver, em busca de um clímax que sempre é trazido pela chave de ouro do soneto.

São como orgasmos líricos, uns mais intensos, outros menos intensos, como na vida; e orgasmos múltiplos, um se sobrepondo ao outro, também como na vida, nos poemas mais longos, como no Monólogo de Uma Sombra, do qual já disse trechos.

Experimentem esse soneto, e vejam este crescendo do qual estou falando.

Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.

Em seus lábios que os meus lábios osculam

Micro-organismos fúnebres pululam

Numa fermentação gorda de cidra.

 

Duras leis as que os homens e a hórrida hidra

A uma só lei biológica vinculam,

E a marcha das moléculas regulam,

Com a invariabilidade da clepsidra!…

 

Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos

Roída toda de bichos, como os queijos

Sobre a mesa de orgíacos festins!…

 

Amo meu Pai na atômica desordem

Entre as bocas necrófagas que o mordem

E a terra infecta que lhe cobre os rins!

 

Mas… e os Versos Íntimos?

Há uns dez anos, dando um curso de teatro para jovens, em Monteiro, no Cariri paraibano, e onde havia jovens de outros municípios, daquele entorno, perguntei:

– Quem sabe decorado os Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos?

Mais da metade sabia.

Eram jovens, eram de teatro, eram paraibanos – sabiam!

Por que sabiam? Porque os Versos Íntimos estão impressos no DNA cultural de quem nasceu na Paraíba.

Eu aprendi Augusto com Papai, mas há toda uma geração de paraibanos que aprenderam Augusto com o poeta Ronaldo Cunha Lima, nos dois famosos programas de perguntas e respostas que o poeta fez, o primeiro na TV Tupi e o segundo na Rede Manchete, na década de 1970.

Transmitidos para todo o Brasil, em rede nacional de televisão, o programa e a performance de Ronaldo, que respondia às questões em versos, gerou curiosidade sobre a obra de Augusto e a divulgou mais do que qualquer programa de governo.

Posso afirmar que a geração nascida a partir dos anos 1960 teve esse contato precoce e intenso com Augusto dos Anjos, que passou a fazer parte do imaginário de toda uma geração esse crédito é inegavelmente do poeta Ronaldo.

Voltando ao curso de teatro: então eu escolhi um dos meninos e pedi para recitar.

Ele ergueu a mão, no gesto clássico dramático, de quem vai recitar com pompa e circunstância, e empostando a voz detonou o primeiro quarteto.

Vês! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão – esta pantera –

Foi tua companheira inseparável!

 

Aí eu interrompi e perguntei:

– Ok, meu filho. Agora me diga: o que quer dizer isso?

E ele, com o encanto e a petulância de quem tem 17 anos respondeu:

– Ah, professora, não sei não. Mas é lindo, não é?

Preciso dizer mais alguma coisa?

Quem é que ouve ou lê Augusto dos Anjos e não fica doido por ele? Quem não se deixa seduzir e encantar por essa linguagem?

Mas os Versos Íntimos fogem um pouco da chamada linguagem ornamentada tão freqüente na obra do poeta. Tirando um formidável aqui e um inevitável acolá – e também a quimera, palavra antiga e que hoje muita gente não conhece – todas as palavras são de uso corrente e facilmente compreensíveis pelo leitor médio. O segredo desse poema está na força das imagens evocadas.

Os Versos Íntimos é como se o poeta visionário resolvesse dar um conselho pra todo mundo entender.

É um poema que em vez de contar, como por exemplo: “No tempo do meu pai…” ou “A minha ama de leite Guilhermina…”, mostra. É aí que reside a sua profunda força teatral que o afasta do tom épico dos poemas visionários. Enquanto a maioria dos poemas é referente ao eu, nos Versos Íntimos ele aconselha, incita, amedronta, ameaça o outro.

Os verbos são todos num tempo imperativo: Vês? Acostuma-te. Toma um fósforo. Apedreja. Escarra.

É uma peça poética de profunda solidão, onde o homem, após ver enterrado o seu último sonho, tem como companhia apenas a Ingratidão, a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa.

No interior, as pessoas dizem: “Não tenho medo da morte, tenho medo da Ingratidão.” – esta pantera, por certo parenta próxima dessa outra criatura felina, a Onça Caetana, que está aí rondando, nos esperando a todos, para rasgar nossas carnes com suas garras. Pois a Ingratidão, essa pantera, é pior, muito pior do que a Caetana.

Hoje em dia, ao caminhar na rua e conviver com os meus às vezes dessemelhantes em shoppings, cinemas, supermercados e seja lá onde for que a vida me leve a esse contato, assombrada com a vulgaridade, a cafajestice, a falta de educação e de noção, não posso deixar de recitar mentalmente o segundo quarteto, pensando que é isso mesmo, que aquilo que me espera é mesmo a lama da deterioração dos costumes, que preciso me acostumar a isso, que estou cercada de feras e de repente me dá uma vontade também de jogar para o alto meus hábitos e ultrapasssar pela direita, ligar bem alto o paredão de som, furar a fila, andar de salto alto no apartamento infernizando o vizinho de baixo, estacionar na vaga de deficientes, finalmente me rendendo, uma vez que vivo entre feras, a essa inevitável necessidade de também ser fera.

O “toma um fósforo, acende teu cigarro”, é o nosso “ser ou não ser, eis a questão”. Fui fumante muito tempo da minha vida e vez por outra, ao pedir a alguém para que acendesse o meu cigarro, nas noites sem horário dos bares da vida, lá vinha a criatura com a frase. E se eu fosse professora do ensino médio diria aos meus alunos que esse fósforo é uma imagem de luz, que o poeta usa para ajudar o seu interlocutor a compreender que “o beijo é a véspera do escarro e a mão que afaga é a mesma que apedreja.” Ou, quem sabe, o poeta não estava pensando nisso, apenas considerou a frase uma boa solução para rimar com escarro?

E chegamos ao segundo terceto. Qual é o soneto da língua portuguesa que tem como chave de ouro um “escarra nesta boca que te beija”?

Lembro de Ferreira Gullar a causar repulsa nas platéias com o poema A Bomba Suja, que começava assim:

“… introduzo na poesia / a palavra diarréia…”

 

Declamei uma vez esse poema em um evento, e foi curioso de ver a repulsa involuntária do auditório ao ouvir a frase. As expressões de asco e de nojo estavam estampadas nas faces das pessoas, elas recuavam, quase sem se sentir.

Mas décadas antes Augusto dos Anjos já havia escarrado nesta boca que te beija e se o décimo quarto verso do soneto hoje talvez não tenha mais esse efeito, é porque, de tão conhecido e repetido, já foi diluído o poder de choque da frase. Mas imaginem o que isso causou nas primeiras leituras e o que ainda causa quando alguém, por certo um não-paraibano – o escuta pela primeira vez.

Finalmente, toda a poesia de Augusto dos Anjos é de grande apelo ao recitativo, sonora, fácil, boa de recitar. Há autores que se prestam mais à leitura, do que ao recitativo, mas a poesia de Augusto é um presente para atores e declamadores.

E o mais curioso – e isso observo sempre que estou recitando Augusto frente a uma platéia é que quando passeio os olhos pelo publico sempre há alguém movendo os lábios, falando, recitando junto, acompanhando as os versos arrebatadores, recitando comigo.

Não quis aqui fazer uma análise profunda da poética de Augusto ou do soneto Versos Íntimos. Se você colocar no Google as palavras “versos íntimos analise”, o mecanismo de busca vai lhe fornecer cerca de 65.000 resultados, desde análises extremamente enriquecedoras e detalhadas de professores, literatos e intelectuais de nome até trabalhos escolares de crianças de treze anos, porque hoje em dia tudo que se escreve se publica na Internet.

No YouTube encontrei 155 videos diferentes de pessoas recitando o poema, de todas as formas que você puder imaginar. Eu mesma recito o poema no meu espetáculo TRAMAS, um recital de música e poesia que em breve estarei trazendo à capirttal paraibana. O que acrescentar, então, a tudo que já foi escrito, dito, imaginado sobre a obra do poeta?

Preferi falar como o coração sobre o poema e a poesia de Augusto.

Falar sobre como essa poesia me chegou, como me formou, como se entranhou na minha mente, na minha formação poética, na minha percepção estética da poesia em geral e do mundo ao meu redor. Falar sobre como essa poesia ainda me emociona e me bate depois de 50 anos recitando e repetindo esses sonetos.

Fica então aqui esta fala, mais depoimento do que critica ou analise literária, um discurso mais afetivo e emocional do que analítico, ou acadêmico. Depois que me aposentei da cátedra universitária fiquei assim meio iconoclasta, procurando abordagens mais espontâneas e inusitadas dos temas, cansada dos rigores do método.

Como diria o próprio Augusto, neste clip que fiz do poema As Cismas do Destino:

“Homem! por mais que a Ideia desintegres,

Nessas perquisições que não têm pausa,

jamais, magro homem, saberás a causa

De todos os fenômenos alegres!

(…)

Por descobrir tudo isso, embalde cansas!

Ignoto é o gérmen dessa força ativa

Que engendra, em cada célula passiva,

A heterogeneidade das mudanças!

(…)

Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes

A perfeição dos seres existentes,

Hás de mostrar a cárie dos teus dentes

Na anatomia horrenda dos detalhes!

(…)

Um dia comparado com um milênio

Seja, pois, o teu último Evangelho…

É a evolução do novo para o velho

E do homogêneo para o heterogêneo!

 

Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo

A apodrecer!. .. És poeira, e embalde vibras!

O corvo que comer as tuas fibras

Há de achar nelas um sabor amargo!

 

 

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R & J de Shakespeare – Juventude Interrompida

Clotilde Tavares | 7 de maio de 2012

Sempre fico com um pé atrás quando saio de casa para ver qualquer espetáculo baseado em William Shakespeare. Isso porque a maioria dos encenadores nunca se contenta em apresentar o texto original, e somos obrigados a presenciar tentativas de tornar o texto mais “acessível”, mutilando a poesia, nivelando por baixo a linguagem, substituindo as belas e raras palavras pelo seu sinônimo mais corriqueiro, ou então “brincando” – no mau sentido – com o texto, recheando-o de palavras e situações obscenas, na velha postura adolescente de debochar daquilo que não se compreende. Também há outras formas de picotar, cortar, detonar e estraçalhar o texto a serviço de propostas de encenação esteticamente bizarras, e muitas experiências desse tipo recebem a aprovação de uma vertente modernosa da crítica, sendo esse aval tanto mais efetivo quanto mais esquisita for a montagem. A fragmentação do texto, sob a justificativa de se extrair dele “novos” e “ocultos” significados, principalmente se o texto for shakespeareano, tem sido um esporte praticado com energia e aplicação. Todas essas reflexões me fazem ir a uma montagem de W.Shakespeare com sentimentos que oscilam entre o terror e o tédio.

Para mim, nada substitui a força e a poesia do texto shakespeareano. Tenho provado ao longo dos meus anos com professora que qualquer adolescente de 16 anos pode não só compreender esse texto como retirar dele muito prazer estético. É uma sensação maravilhosa quando vejo um aluno descobrir que “o túmido astro que ergue o império de Netuno” é a Lua, e com essa compreensão, que passa primeiro pelo aprendizado de uma palavra nova, não-comum, “túmido”, depois por entender a influência da Lua sobre as marés, coisa que muitos não sabem, e finalmente quem é Netuno, e o que é a mitologia grega. Além de tudo isso, a viagem pela “linguagem ornamentada” usada por W.S. suscitou uma vez um diálogo interessante entre dois alunos a respeito da frase acima. Um deles perguntou: – “E por que ele não diz ‘a Lua’ logo de uma vez?” O outro, que estava ao lado, logo retrucou: – “Ô idiota, é a mesma coisa que o pavão deixar de ser colorido para ser em preto e branco!”

Pois é.

Então, quando fui ver “R & J de Shakespeare – Juventude Interrompida”, um texto do norte-americano Joe Calarco com direção de João Fonseca, na noite de 5 de maio de 2012 no Barracão Clowns, aqui em Natal, onde moro, fui preparada para tudo e nem li o programa entregue antes do espetáculo. Eu sabia apenas que eram quatro rapazes, que a montagem tinha vários prêmios e indicações, e só.

Mas foi tudo lindo, meu caro leitor. O que vi naquela noite foi uma prova de que é possível respeitar o texto e a dramaturgia shakespeariana e ao mesmo tempo envolver a platéia, formada quase que somente de jovens entre os 16 e 30. Havia ali umas cem pessoas, e somente eu da minha idade – mais de 60. Uma ou outra pessoa que aparentava ter mais de 35 anos e o resto eram jovens mesmo, universitários, gente de teatro, garotada.

O espetáculo funciona, e penso que funciona por vários fatores, reunidos pela competente direção. Tanto eu fiquei encantada quanto a jovem que, sentada à minha frente, recostava a cabeça do ombro do namorado. Provavelmente nos encantamos por motivos diferentes mas é esse o segredo de uma boa encenação, que tem a capacidade de levantar o véu que separa a nossa realidade comum e cotidiana daquele mundo inconsciente, estranho, caótico e desconhecido que temos dentro de nós. Todos viajam, cada um à sua maneira.

“R & J” se inicia propondo um nível duplo de representação ou de metamorfose: atores que fazem o papel de estudantes de um colégio católico que por sua vez fazem o papel dos personagens shakespearianos. Aqui e acolá, ao longo do espetáculo, eles voltam aos “alunos” com intervenções rápidas, bem humoradas mas rapidamente retornam a Romeu, Julieta, a Ama, Frei Lourenço. Esse texto sempre me arrebata quando é dito da forma como o foi, com verdade e fiel ao que foi escrito há mais de 400 anos. Os momentos onde os estudantes voltam a si mesmos também são dotados de um encanto, um frescor, uma juventude, uma beleza, qualidades que a peça pede, exige, e que não se encontra em todo tipo de ator. Mas são lindos, esses rapazes! São jovens, são suaves, são fortes, são saudáveis, são inteiros, “intocados pela tragédia”, como o eram Romeu e Julieta ao se conhecerem e experimentarem o amor.

Mas somente a beleza, a força, a juventude, não são suficientes para garantir um bom momento teatral. Esses rapazes são, principalmente, bons atores, bem preparados, com prontidão, vigor físico e fé cênica. Uma das coisas boas do espetáculo é a precisão, o cuidado com os detalhes, a movimentação perfeita, o bom-acabamento. Isso mostra ensaio, ralação, trampo, seriedade, compromisso, dedicação. Pablo Sanabio (como Frei Lourenço, Ama e outros) e Geraldo Rodrigues (como Julieta) estavam irrepreensíveis. O primeiro, nos papéis da Ama e de Frei Lourenço foi a melhor presença em cena, mas não de uma forma que desequilibrasse o conjunto – o que é bom. O segundo consegue o milagre de nos revelar Julieta sem apelar para a caricatura ou o travestismo. No entanto, tive dificuldade para entender o que dizia Felipe Lima (Pai de Julieta e outros) e quanto a João Gabriel Vasconcellos (Romeu) – como é bonito, esse rapaz! – foi um Romeu perfeito, embora nos minutos finais da peça – só nos minutos finais! – tenha ficado um pouco sem voz e cansado. Talvez não estivesse em uma noite boa. Acontece.

Muito competente a cenografia, usando elementos do ambiente escolar – carteiras, giz quadro-negro, papel A4, clipes (os brincos da ama, achado genial!) – aliada ao figurino: ternos e sapatos macios, o paletó usado de várias formas – saia, manto, pelo avesso – funcionou muito bem. E ficou tudo redondo, junto com a luz, a música e os efeitos sonoros. No Barracão Clowns estávamos em um arranjo rigorosamente elisabetano, com platéia dos três lados e uma profundidade maior do palco no quarto lado. Não sei se é essa a proposta real de distribuição do espaço cênico que eles usam em outros locais mas fiquei curiosa de ver como seria essa peça em um teatro de arquitetura convencional, com platéia frontal.

E como é bom desfrutar do encanto do texto de W.S. da forma como foi escrito, com todas aquelas metáforas espetaculares, as imagens poéticas, as palavras tão eternas e tão permanentes e ao mesmo tempo parecendo terem sido inventadas na hora pela verdade como são ditas! Na cena do balcão, como é sutil e delicada a forma de emissão do texto de João Gabriel Vasconcellos (Romeu) mas que nada seria sem a expressão amorosa do rosto e o olhar apaixonado que o personagem dedica à sua dama, no balcão, banhada pelo luar!

O que dizer mais? Somente que me agrada muito ver que ainda há espaço para a poesia em seu estado mais luminoso, despida de experimentalismos cênicos que a descaracterizam. Que a poesia ainda continua sendo capaz de arrebatar a mente e o coração de uma geração bombardeada a todo instante pelas vulgaridades de um milhão de views que lotam o Youtube. Que acreditar no amor ainda vale a pena. Que William Shakespeare continua imortal e tão moderno quanto eterno. Que o teatro continua vivo. E que, enquanto houver vida no teatro, a vida pode ser possível.

Veja outros posts deste blog que falam sobre William Shakespeare clicando na tag correspondente na coluna da direita.

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Deífilo Gurgel (1926-2012)

Clotilde Tavares | 1 de fevereiro de 2012

Aqui neste blog fica minha homenagem ao professor Deífilo Gurgel, que nos deixou hoje. Em 2003, eu publicava na Tribuna do Norte o texto abaixo. Deífilo foi importante na minha vida de muitas maneiras, mais do que posso relatar aqui, pois a emoção e a dor não me deixam escrever direito.

Minha eterna saudade.

UPDATE 02/02/2012 às 9:37 – Ao acordar e ver os jornais, soube que o prof. Deífilo encontra-se na UTI, em estado gravíssimo, respirando por aparelhos, e que a notícia de sua morte – transmitida a mim por um telefonema do seu filho Carlos Gurgel, que me ligou chorando copiosamente – foi devida a um desencontro de informações. Resta a nós orar por ele e a mim pedir desculpas ao leitores e à família pelo erro involuntário que cometi.

UPDATE 06/02/2012 às 19:30 – Vi há pouco no noticiário que o prof. Deífilo Gurgel faleceu hoje por volta do meio-dia. Depois de tudo que já foi dito aqui, quase nada me resta, a não ser desejar paz e conformação à família e reafirmar minha saudade e a gratidão por tudo que aprendi com ele.




Por que Deífilo Gurgel?

No mais recente número da Revista Preá, ao ser entrevistada para a coluna 13 x 1, pediram-me que citasse uma “personalidade cultural do Rio Grande do Norte”. Não precisei pensar muito, e citei o nome de Deífilo Gurgel.

Mas quem é Deífilo? Se o meu caro leitor não sabe, informo-lhe que o pesquisador e folclorista Deífilo Gurgel é filho de Areia Branca, mas adotou Natal como moradia há mais de cinqüenta anos. Estudioso e entusiasta do folclore potiguar, vem trilhando os caminhos abertos por Câmara Cascudo, tendo sido professor da Disciplina de Folclore Brasileiro da UFRN até aposentar-se, no início dos anos 90. Além de folclorista é poeta e ensaísta, tendo publicado inúmeros livros, entre os quais se destaca “Espaço e Tempo do Folclore Potiguar”, uma obra fundamental para conhecer a cultura do nosso povo e que ainda espera uma edição mais bem cuidada, à altura da importância do conteúdo.

Deífilo Gurgel é irmão do escritor Tarcísio Gurgel, pai do poeta Carlos Gurgel e do artista plástico Fernando Gurgel, além de outros sete filhos, belos e talentosos. Junto com Zoraide, sua esposa, protagoniza uma história de amor que já dura décadas e que parece ter fôlego para estender-se até a Eternidade.

Mas, o que torna este homem uma personalidade cultural maior neste estado? O que faz brilhar sua luz acima de todas as outras? Para mim, o que distingue Deífilo Gurgel entre os inúmeros homens cultos deste estado, todos eles produtores de obras importantes para a nossa vida cultural, é a sua postura de intelectual sinceramente comprometido com o exercício e a prática da busca do conhecimento. É a abnegação quase franciscana com que se dedica aos estudos da cultura popular, empregando na maioria das vezes seus próprios recursos, pagando para produzir conhecimento, tirando do orçamento doméstico para financiar viagens, para comprar fitas para o gravador e muitas vezes ajudando financeiramente os artistas que o descaso da sociedade deixa muitas vezes morrer à míngua. É a simplicidade que ele professa como traço principal de caráter numa terra de culturas ocas, de falsas competências, de reputações construídas sobre o vazio. É a boa vontade que manifesta em auxiliar aqueles que o procuram com dúvidas sobre os temas que estuda, nunca sonegando informações, nunca exercendo qualquer monopólio sobre o conhecimento. É Deífilo Gurgel, o homem afável, bondoso, simpático, alegre. É a inocência marota com que nos conta a história do “cabelinho crespo”, mais uma colhida dentro da sua pesquisa sobre os contos do “demônio logrado”.

Por isso o admiro, e quero hoje com você, meu caro leitor, dividir e proclamar essa admiração. Ao ler minha entrevista na Revista Preá, ele me mandou uma carta, onde se diz envaidecido pela indicação e conclui com uma frase que deixo aqui, concluindo este elogio público, para que você possa alcançar o grau de simplicidade que ele mostra em tudo o que faz, e que o torna único entre todos.

Diz Deífilo Gurgel: “Clotilde, aceito sua homenagem, mas peço licença para dividi-la com todos aqueles que, na distância dos humildes povoados, esquecidos da civilização, preservam na memória privilegiada os tesouros fabulosos de uma cultura que o Brasil insiste em ignorar. Estes, sim, no silêncio do seu anonimato são, para mim, as grandes personalidades da cultura brasileira e norte-rio-grandense.”

É por isso que admiro e louvo Deífilo Gurgel.

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