Joaninha
Clotilde Tavares | 23 de maio de 2014Joaninha sofre todo dia com o marido. Baixinho, magrinho, só tem nervo, tendão e osso. Come feito um bicho, doido por carne gorda, mas tanta gordura ninguém sabe o que o corpo faz dela, deve ser para alimentar a ruindade. O dia todo dentro de casa, na cizânia, na intriga, tecendo, reclamando, ciumando, desconfiando, aborrecendo Joaninha, mexendo nas coisas, abrindo as gavetas, destampando as panelas, botando defeito em tudo, uma praga. De noite, na hora da cama, quer sempre, quer toda noite e demora fazendo. Joaninha, nada. Os filhos dizem: “Mãe, ninguém sabe como você aguenta o pai.” E é porque eles nem sabem da cama.
Um dia ele vai dormir e acorda morto. Vem o padre, olha, benze, deve ter sido derrame, está morto mesmo, foi derrame, diz o padre. Naquelas lonjuras, sem médico sem nada, é o padre quem atesta. E fazem o enterro. Aí, Joaninha vive sossegada e feliz. Até casa de novo, com um bem mais novo do que ela – e gordo.
Trinta anos depois, Joaninha morre. Os filhos vão abrir o túmulo para enterrar a mãe e encontram os ossos do pai, já limpinhos. No crânio sem olhos, há uma saliência no alto da cabeça. O filho mais novo, curioso, passa o dedo, enfia a unha entre aquela coisa e o crânio, e puxa, devagar, o prego caibral de doze centímetros, batido por mão segura e determinada, há 30 anos.
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(A imagem que ilustra este texto é um quadro do pintor peruano Albert Lynch (1851–1912).