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Um desmantelo verde

Clotilde Tavares | 1 de abril de 2010

“Então pintei de azul os meus sapatos / por não poder de azul pintar as ruas…”

Assim Carlos Pena Filho, poeta enorme, enormíssimo, começa seu “Soneto do desmantelo azul” que ouvi tantas vezes recitado pela voz rouca e forte do meu pai. Carlos Pena Filho é um poeta pernambucano, e um dos meus dez poetas maiores, se eu fosse fazer uma lista. Aqui, em outra ocasião, já transcrevi poema dele muito inspirador nessa minha vida que agora se desenrola sob o delicado véu da terceira-idade.

Mas voltemos ao desmantelo azul.

Eu, doida por novidades, fui fazer as unhas terça-feira, antes de ontem. Aí inventei de pintar uma cor absolutamente escandalosa, diferente, que não tivesse nada a ver com aquilo que à primeira vista eu dou a impressão de ser.

E embarquei num desmantelo verde cintilante, pintando as unhas de uma cor tão berrante que ultrapassa qualquer tipo de mau-gosto. Minha filha odiou; mas fez a ressalva de que não gosta desse tipo de cor nem em adolescentes.

Mas eu fiz sucesso. Onde eu chego as pessoas se aproximam para olhar minhas unhas (ah, e também pintei as unhas dos pés). No supermercado ontem foi um auê, com todas as terceira-idades que encontrei dizendo que iam aderir ao verde.

A vida é boa por causa dessas coisas diferentes e malucas que a gente faz. E o melhor de tudo é que, quando finalmente me aborrecer do desmantelo verde, um algodão com acetona resolve o problema de forma rápida, fácil e indolor.

Fique então com o Soneto do Desmantelo Azul, e com a foto do desmantelo verde.

SONETO DO DESMANTELO AZUL, de Carlos Pena Filho

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

Você encontra o soneto aqui.

E agora, o DESMANTELO VERDE…

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Carlos Pena Filho, soneto do desmantelo azul, terceira-idade, unhas cintilantes
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Estar pronto é tudo

Clotilde Tavares | 23 de março de 2010

Estou  fazendo umas aulinhas de inglês. Nada demais, apenas a velha “conversation class”, porque pretendo viajar daqui a algumas semanas e preciso perguntar às pessoas como pegar um ônibus, quanto custa tal produto, a que horas o museu fecha e onde posso encontrar comida sem glúten.

Desde os onze anos de idade que faço aulas de inglês. No colégio, fazendo parte do currículo de primeiro e segundo grau, foram oito anos. Fiz também Cultura Inglesa, quando adolescente. Ouvi (e ouço) muita música em inglês – o rock sempre fez parte da minha vida – e os  filmes e revistas nesse idioma sempre estiveram misturados com meu dia-a-dia. Depois, na Faculdade, estudei muito em livros em inglês e estudei o chamado “inglês instrumental” – que é aquele tipo de inglês voltado para termos e expressões dentro da minha profissão, no caso a Medicina, que exerci até 1990.

Com a Internet, que frequento assiduamente desde 1992, o idioma incorporou-se definitivamente ao meu cotidiano, de tal forma que muitas vezes me perguntam se determinado software que uso é em inglês ou português e eu não sei responder.

Mas toda essa prática sempre foi voltada para a leitura, para a compreensão e expressão da palavra escrita. Na hora de falar, ou pior, de entender o que me dizem, eu fico muito abaixo da média.

Quando tento conversar a coisa se complica e fica ao mesmo tempo muito engraçada. Isso porque, durante as aulas, eu não abro mão de dizer em inglês nada do que vem à cabeça, como se estivesse numa conversação livre na minha língua materna. Depois de uma meia hora disso, fico simplesmente extenuada, cansada mesmo, porque o processo exige de mim uma atenção, uma concentração, uma prontidão extrema.

É como aprender a dirigir: quando é no ínício, a gente precisa ficar atento à troca de marchas, pressão nos pedais e acionamento de luzes e sinaleiras que, na sequência, se tornam comportamentos automáticos e deixam de nos preocupar.

Por enquanto, a minha conversation class me exige extrema atenção, um estado permanente de alerta, de prontidão, de “readiness”, conceito tão bem traduzido na frase de William Shakespeare em Hamlet, Ato V, Cena 2.

“Not a whit, we defy augury; there’s a special Providencein the fall of a sparrow. If it be now, ‘tis not to come, if it be not to come, it will be now; if it be not now, yet it will come. The readiness is all.”

ou

De modo algum; nós desafiamos o agouro; há uma providência especial na queda de um pardal. Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver para vir, será agora; e se não for agora, mesmo assim virá. O estar pronto é tudo. (Na tradução de Ana Amélia Carneiro de Mendonça)

Então, em busca do “estar pronto”, do falar sem precisar raciocinar escolhendo palavras e do pelejar para estropiar o mínimo possível o idioma de Shakespeare, fico por aqui, com um singelo “See ya!”

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aprendendo inglês, conversation class, estar pronto é tudo, Hamlet, prontidão é tudo, readiness is all, Shakespeare
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Antigos carnavais

Clotilde Tavares | 14 de fevereiro de 2010

Neste domingo de Carnaval a minha vida virtual está por um fio. Falo assim porque o adaptador do meu notebook – aquele acabo que conecta a máquina à tomada de energia – está com mau contato, com péssimo contato, em vias de pifar. Está na garantia, mas onde danado eu vou achar assistência técnica autorizada num domingo de Carnaval? Pois é.

Enquanto escrevo, fico com um olho na tela e outro no pequeno led verde, que indica que o contato está feito. Se o led apaga, e apaga do nada, eu fico sem a máquina…

Então, nas carreiras, “ligêro como quem róba”, como se diz lá no mato, vou postar aqui umas imagens de antigos carnavais e lhe pedir encarecidademnte que não me abandone enquanto eu não normalizar essa situação e ficar sem atualizar o blog todo dia. Entre os meus grandes terrores está o de perder o contato com você, meu caro leitor, em homenagem de quem me sento todo dia aqui para escrever.

1949 foi o meu primeiro Carnaval. Eu tinha somente um ano e dois meses, usei um pierrô de seda colorida e, de lança-perfume em punho, já anunciava um futuro nada ortodoxo...

Em 1952 usei essa fantasia de presidiário em seda listada de vermelho e branco. As fantasias eram idealizadas por Papai e confeccionadas por Mamãe. A cidade ao fundo é Campina Grande-PB e eu tinha 4 anos de idade.

1953. Eu e meu irmão Braulio fantasiados de "turcos". Braulio de calça de seda azul, blusa branca e bolero preto bordado de lantejoulas, Na cabeça um chapeu feito de cartolina com areia prateada; eu uso saia de várias cores de seda, e na cabeça um turbante (ai, meu Deus! esse turbante nunca ficava no lugar) de seda violeta - que Mamãe chamava de "ciclámen". Nos pés, tênis e meias brancas para "pular" o frevo sem machucar os pés... Cada um com sua lança-perfume e o saquinho de confetes.

Há também uma foto maravilhosa do Carnaval de 1950, onde eu estou de havaiana vermelha; mas essa foto – com sua descrição – você vai ver lá no blog Memoria Viva.

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Carnaval, carnaval do passado, fantasia
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"Toda vez que um juiz prende um ladrão…"

Clotilde Tavares | 11 de fevereiro de 2010

Hoje, com a notícia da prisão do governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, disseram logo:

– Não adianta! Rapidinho vem outro juiz e manda soltar!

Aí eu me lembrei de uma história que está lá no livro “Os Martelos de Trupizupe”, da autoria do meu irmão Braulio Tavares.

Braulio glosa em martelo em decassílabo o mote “Toda vez que um juiz prende um ladrão/  Chega outro juiz, manda soltar!”

O verso foi escrito há uns oito anos, mas parece que foi escrito hoje, não é, minha gente?

*     *     *

Glosa ao mote

Toda vez que um juiz prende um ladrão/ Chega outro juiz, manda soltar

Por Braulio Tavares – Do livro “Os Martelos de Trupizupe” (Natal, Engenho de Artes, 2004)

1.

Toda vez que um soldado de polícia

leva preso um filhinho-de-papai,

meia hora depois ele já sai

com propina na hora mais propícia…

Toda vez que um jornal dá a notícia

dos trambiques de algum parlamentar,

noutro dia precisa apresentar

desmentidos de toda a redação…

Toda vez que um juiz prende um ladrão,

chega outro juiz, manda soltar!

2.

Quando algum promotor tem a coragem

de enfiar sua mão nesse vespeiro,

chega um fax e manda bem ligeiro

que ela mexa com outro personagem…

Se o Congresso descobre sacanagem

e promete depressa investigar,

muita gente começa a encomendar

uma pizza gigante pro salão…

Toda vez que um juiz prende um ladrão,

chega outro juiz, manda soltar!

3.

Mesmo quando um ladrão endinheirado

por acaso pernoita na cadeia

ele tem boa cama e boa ceia

numa cela com ar refrigerado.

Sendo o caso de ser um magistrado,

tem direito a TV e frigobar;

tem cozinha francesa no jantar

e cobertas de seda no colchão…

Toda vez que um juiz prende um ladrão,

chega outro juiz, manda soltar!

4.

Outro caso na história brasileira

é o juiz conhecido por Lalau

que roubou cem milhões dum tribunal

e escondeu do outro lado da fronteira.

O juiz vai em cana terça-feira

e na sexta já mandam libertar;

não tem homem que faça ele passar

sete dias seguidos na prisão…

Toda vez que um juiz prende um ladrão,

chega outro juiz, manda soltar!

5.

No Brasil tem indústria madeireira

derrubando floresta em todo Estado,

e às vezes vem um advogado

traz a lei, e interrompe essa sujeira.

Mas aí um ricaço abre a carteira

compra a peso de ouro a liminar,

e na mata se volta a escutar

motosserra, machado e caminhão…

Toda vez que um juiz prende um ladrão,

chega outro juiz, manda soltar!

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corrupção, José Roberto Arruda, martelo agalopado, política brasileira, trupizupe
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Galo cantou, às 4 da manhã…

Clotilde Tavares | 8 de fevereiro de 2010

“À meia-noite acorda um francês

Sabe da hora e não sabe dos mês

Tem esporas e não é cavaleiro

Tem uma serra e não é carpinteiro.

Cava no chão e não acha dinheiro.

O que é o que é?”

Quando eu era menina, Mamãe me perguntava essa adivinha, que ela trazia entre as milhares de coisas que tinha decoradas. A gente logo respondia: é o galo!

Com presença forte ao longo de todo o folclore, tanto brasileiro quanto mundial, o “Francês” da adivinha é um animal emblemático, que “chama o dia e afugenta a noite” com seu canto em horas certas.

Em Hamlet, logo no primeiro ato, Shakespeare o chama de “trombeta da manhã”, na fala de Horácio:

“…Ouvi dizer que o galo, essa trombeta da manhã, com sua voz vibrante e clara desperta o dia, e que a esse aviso, os espíritos errantes, onde quer que estejam, retornam aos seus refúgios…”

E em Macbeth é usado como marcador do tempo na voz do porteiro:

“… Estivemos bebendo até o primeiro cantar do galo…”

Antes que o galo cantasse, Pedro negou três vezes a Cristo; e no jogo do bicho é o número 13, sendo por isso mascote do Treze Futebol Clube, de Campina Grande, um dos meus times do coração, cognominado “O Galo da Borborema”.

Uma história curiosíssima de um galo que seria preparado para o almoço de domingo já foi contada no meu livro Coração Parahybano, na crônica “A minha Noruega”, na página 113; e em Natal, onde moro, ele é considerado um símbolo da cidade, encimando orgulhosamente as torres das igrejas.

João Cabral de Melo Neto, no poema Tecendo a Manhã, o define:

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

Mas essa qualidade de tecer a manhã antes que a manhã real surja muitas vezes incomoda quem quer dormir e não consegue.

Tenho um amigo que mora numa casa onde o quarto dele é no primeiro andar. A janela dá para um pequeno – muito pequeno – quintal de um vizinho.

Aí, o vizinho foi e comprou um galo. Toda santa madrugada o animal começava a cantar, e o barulho ecoava no pequeno e apertado espaço entre as casas.

Então o meu amigo pegou sua vara de pescar, amarrou um peso na ponta, colocou a vara pela janela em direção da biqueira de zinco da casa do vizinho e, toda vez que o animal cantava, ele com a vara, batia na biqueira: dém, dém, dém.

O galo cantava, ele batia. Cocoricó, dém, dém, dém.

Depois de duas noites de dém, dém, dém o vizinho sumiu com a ave para outro galinheiro, onde foi tecer a manhã bem longe de ouvidos humanos precisados de repouso…

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barulho urbano, cantar do galo, galo, Hamlet, João Cabral de Melo Neto, Macbeth, tecendo a manhã, Treze Futebol Clube
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O inferno feminino

Clotilde Tavares | 27 de janeiro de 2010

Ivana Arruda Leite

Ontem, um dos links que publiquei foi o do blog da escritora Ivana Arruda Leite. Como eu gosto dos livros dela, meu caro leitor! O que mais gosto nela é a forma como aborda os temas ligados ao universo feminino, completamente alheio aos edulcorantes artificiais que geralmente cercam as chamadas “coisas de mulher”.

Como está escrito sobre as portas do inferno, ao entrar nos seus livros o leitor precisa abandonar toda a esperança, e nutrir-se de coragem para encarar a profunda tragédia que muitas vezes permeia o cotidiano feminino, aqui exposto sem dó nem piedade. No seu livro “Falo de mulher”, o aparente paradoxo do título, repleto de duplos entendimentos, se derrama pelos contos, como “Receita para comer o homem amado”, “A puta seletiva”, “Mulher é tudo igual” e outros, onde a mulher, eviscerada e nua em seus desejos e impulsos mais secretos, fala sempre a verdade.

Mas Ivana é também lírica e memorialista , no seu livro “Eu te darei o céu”, recuperando para nós, mulheres nascidas no inícios dos anos 1950, a infância e adolescência perdidas, com as músicas de Celly Campelo e Roberto Carlos, vestidos rodados e cabelos armados nos assustados da adolescência, seguidos pela fase “caia na real”, onde os anos de chumbo vieram, descendo com seu punho selvagem, esmagando e escurecendo o céu da nossa geração.

Fã de seus livros desde alguns anos atrás, conheci-a pessoalmente em São Paulo no final de 2008, na “Balada Literária”, evento organizado pelo escritor Marcelino Freire nas quebradas da Vila Madalena. Bom papo, boa conversa, alegre, divertida, ficamos horas falando das nossas séries preferidas na TV por assinatura. Tentei olhar para aquela mulher morena, miúda, sentada ao lado de sua filha Bebel e tomando um café, com a bolsa no colo, e fiquei a imaginar o violento pulsão criativo escondido por trás de pessoa tão amável e simples. Pulsão este que faz com que Ivana consiga desvendar o mais grotesco do universo existencial feminino e expor suas chagas ocultas, seus sonhos inconfessáveis, seus amores maníacos, seus ideais inúteis, com um toque profundo de humor, mas humor negro, é bom que se diga.

Ivana Arruda Leite é uma escritora que é preciso conhecer, sem perda de tempo, pelo muito de Humanidade que expõe nas histórias e personagens.

Eu recomendo. Leia alguns dos seus contos aqui.

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As igrejas do interior – VI

Clotilde Tavares | 13 de janeiro de 2010

Há tempos que eu não postava aqui as fotos das igrejas das pequenas cidades do interior, uma das minhas paixões. Você pode mandar a foto da igreja da sua cidade; mas precisa mandar também o crédito da foto, ou seja, o nome do fotógrafo. E veja os posts anteriores clicando na coluna de tags da direita, sob o nome igrejas. Com esta postagem, já são 60 igrejas.

Galante-PB. Foto Egberto Araújo.

Galante-PB. Foto Egberto Araújo.

Capela da Vila de Montemor, Rio Tinto-PB. Foto Guy Joseph.

Taipu-RN. Foto de Sandro Fortunato

Mulungu-PB. Foto Fábio Mozart.

Mogeiro de Baixo-PB. Foto de Fábio Mozart.

Goianinha-RN. Foto Cinara Andrade.

Santa Luzia-PB. Foto Egberto Araújo.

Jardim do Seridó-RN. Foto Joaquim Junior.

Iguatu-CE. Foto Manoel Bomfim.

Nísia Floresta-RN. Foto Sandro Fortunato.

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A vida é sonho

Clotilde Tavares | 11 de janeiro de 2010

Na obra A Vida é Sonho, de Calderón de la Barca (1600-1681) o príncipe Segismundo vive desde a infância numa prisão escura, acorrentado, tendo sido ali colocado por seus pais em virtude de uma profecia que vaticinava que ele, chegando à idade adulta, traria grandes desgraças ao reino.

Muitos anos depois, o rei arrepende-se e começa a pensar se havia procedido corretamente aprisionando o filho daquele modo. Manda então narcotizá-lo, retirá-lo da prisão e, ao acordar daquele sono estranho Segismundo se vê no palácio real, bem vestido e cheio de jóias. Dizem-lhe que ele é príncipe, e que tudo aquilo que lhe havia acontecido antes teria sido apenas um sonho.

Uma vez investido no seu novo papel, Segismundo, de acordo com a profecia, começa a cometer os desatinos que haviam sido anunciados quando do seu nascimento. Sem conseguir suportar seus desmandos e loucuras, o rei faz a operação inversa: narcotiza-o, despe-o das roupas caras e das jóias e encerra-o novamente no escuro calabouço, preso a grossas correntes.

Ao acordar, Segismundo se lamenta, preso entre o sonho e a realidade, numa das mais belas páginas poéticas já escritas.

1

É certo; então reprimamos

esta fera condição,

esta fúria, esta ambição,

pois pode ser que sonhemos;

e o faremos, pois estamos

em mundo tão singular

que o viver é só sonhar

e a vida ao fim nos imponha

que o homem que vive, sonha

o que é, até despertar.

2

– Sonha o rei que é rei, e segue

com esse engano mandando,

resolvendo e governando.

E os aplausos que recebe,

Vazios, no vento escreve;

e em cinzas a sua sorte

a morte talha de um corte.

E há quem queira reinar

vendo que há de despertar

no negro sonho da morte?

3

– Sonha o rico sua riqueza

que trabalhos lhe oferece;

sonha o pobre que padece

sua miséria e pobreza;

sonha o que o triunfo preza,

sonha o que luta e pretende,

sonha o que agrava e ofende

e no mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,

no entanto ninguém entende.

4

– Eu sonho que estou aqui

de correntes carregado

e sonhei que em outro estado

mais lisonjeiro me vi.

Que é a vida? Um frenesi.

Que é a vida? Uma ilusão,

uma sombra, uma ficção;

o maior bem é tristonho,

porque toda a vida é sonho

e os sonhos, sonhos são.

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O quarto Rei Mago

Clotilde Tavares | 6 de janeiro de 2010

Hoje é dia dos Santos Reis e a minha cidade Natal comemora em festa esses simpáticos personagens que embora não sejam santos da Igreja Católica recebem do povo desta terra a devoção e o respeito. Pensando nisso é que resolvi contar aqui a você uma história, já contada pelo escritor americano Henry Van Dyke (1852-1933) que, numa bela alegoria, fala sobre a existência de um quarto Rei Mago e o seu encontro com a divindade.

Chamava-se Artaban este sábio do Oriente que, juntamente com seus colegas Melchior, Gaspar e Baltazar resolveram ir a Belém reverenciar o menino que, diziam as profecias, seria mais tarde Rei dos judeus. Vendeu ele todos os seus bens e converteu-os em três pedras de incalculável valor com as quais pretendia presentear o menino: uma safira, um rubi e uma pérola. E partiu para encontar os três outros magos em um lugar previamente combinado. Mas Artaban não conseguiu chegar ao encontro pois demorou-se no caminho socorrendo um pobre homem, doente e morto de fome e sede, que pediu a sua ajuda.

Depois de curado, o homem lhe revelou que o Messias já havia nasido em Belém. Sem dinheiro, perdido da caravana na qual havia partido, Artaban teve que vender sua preciosa safira para conseguir atravessar o deserto. Ao chegar em Belém, encontrou muita miséria, fome, escravidão e doença. Vendeu então o rubi para comprar alimento e agasalho para os que tinham fome e frio, e salvou muitas crianças de serem degoladas pelos soldados de Herodes. Todas essas tarefas o distanciavam ainda mais do seu destino mas Artaban simplesmente não conseguia ficar indiferente aos que dele precisavam. E, sempre desviado do seu objetivo pelos apelos dos pobres e dos sofredores, foi vivendo ao longo dos anos, sempre procurando chegar até Cristo, sem, no entanto, conseguir.

Passados mais de trinta anos, ouviu dizer que estavam levando o filho de Deus ao Gólgota para crucificá-lo. Artaban ainda guardava seu mais caro tesouro: a pérola, e resolveu usá-la para livrar o Messias da morte. Mas na subida do Calvário encontrou uma mulher desesperada que lhe pediu para salvar-lhe o filho da escravidão e Artaban usou a pérola para comprar a liberdade do rapaz. Quando chegou ao cume, era a hora mesmo em que Jesus estava morrendo. O céu tornou-se escuro, raios e trovões cortavam o espaço, a terra tremia e grandes pedras começaram a rolar por cima das pessoas. Uma delas atingiu Artaban, ferindo-o gravemente.

E ele falou: “Oh, meu senhor, tanto que te procurei e agora que te encontro estou cego pela dor e pelo sangue que me cobre a vista! Será que nunca vou conseguir finalmente ver a tua face?” E Cristo respondeu: “Mas tu já viste muitas vezes a minha face. Quando eu estava doente, e me curaste; quanto eu tive fome, e tu me alimentaste; quando a morte me ameaçava, e me defendeste; quando eu estava preso, e me libertaste. Tudo aquilo que fizeste aos outros, fizeste a mim, e quando aquelas pessoas voltaram para ti os seus olhos em agradecimento, era eu que te olhava; quando elas beijaram as tuas mãos, era eu que te beijava.”

Ouvindo então essas doces palavras, Artaban, o velho sábio, o quarto Rei Mago, finalmente sossegou o seu coração, e, compreendendo que havia chegado ao fim da sua busca, fech0u os olhos e morreu em paz.

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A botija

Clotilde Tavares | 26 de dezembro de 2009

Câmara Cascudo. 1898-1986.

Diz Luís da Câmara Cascudo que o tesouro enterrado é um mito presente em quase todas as culturas e que no Nordeste recebe o nome de “botija”: “… ouro em moedas, barras de ouro ou de prata, deixados pelo holandês ou escondido pelos ricos, no milenar e universal costume de evitar o furto ou os ladrões.” (Dicionário do Folclore Brasileiro)

Riquíssimo é o conjunto de superstições e crenças que envolvem o assunto na nossa cultura. Primeiro vem o sonho. Sonha-se com o tesouro, que muitas vezes é indicado por almas penadas, seres do outro mundo condenados a sofrer nas chamas do Inferno enquanto  o ouro escondido em vida não for encontrado. Parte dele deverá se destinar a missas pelo defunto e o resto fica para o herói que, afrontando os perigos de empresa tão arriscada, desenterra o ouro.

Fui criada ouvindo histórias de botija. Aprendi com os mais velhos e recordo hoje na leitura de Cascudo que para desenterrar uma botija é preciso obedecer a certas regras. É preciso ir à noite, sozinho, sem falar com ninguém e em silêncio. Se contar a outra pessoa, o tesouro some. Se outra pessoa for pegar a botija sonhada por alguém, não encontra nada. Quando muito, uma panela de carvão em lugar do tão cobiçado ouro. E é preciso traçar um “sino salomão” (um signo de Salomão, a estrela de seis pontas) no chão, antes de começar a cavar.

Na cidade de Cerro Corá, onde estive em 1999, ouvi uma historia de botija. Passou-se na Fazenda Tupã, que era propriedade de Sérvulo Pereira, magnata daquela região e dono de minas de ouro, e que hoje pertence a seus descendentes. Um rapaz que trabalhava lá começou a sonhar com uma “bola de ouro” que estaria enterrada em determinado lugar da casa sede da fazenda. Contou a um, contou a outro, mas ninguém deu crédito à história, e parece que nem ele mesmo estava acreditando muito. Aí ele foi morar em Natal, mas o sonho não parou de persegui-lo até que, no final de 1998, foi lá no local indicado pelo sonho e arrancou a botija. Um buraco entre a parede e o piso, na parte anterior da casa, foi somente o que encontraram na manhã seguinte. Ouvi a história e fotografei o buraco quando andei por aquelas paragens em 1998.

Meu pai contava a história de um homem que vivia numa fazenda em Minas Gerais e sonhava com uma botija enterrada em uma casa na rua da Imperatriz, no Recife, cidade à qual ele jamais tinha ido. Um dia, esse homem resolveu sair de onde morava e empreender a busca do tesouro. Foram muitas peripécias e um final inusitado, e essa história me impressionou tanto, ecoou tanto dentro da minha cabeça durante tanto tempo que eu resolvi contá-la em livro. Misturei com outras histórias também da minha infância e daí resultou um livro, “A Botija”, que ganhou em 2000 o Prêmio Câmara Cascudo de Literatura, que é o prêmio da Prefeitura Municipal do Natal. Editado pela editora 34 em 2006, o livro é muito bem aceito e está sendo adotado como leitura obrigatória do vestibular de 2011 da Universidade Federal de Campina Grande.

Um tesouro de histórias, arrancado do profundo solo da minha infância: é esta botija, brilhando como ouro nas noites da imaginação.

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