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Selfie

Clotilde Tavares | 8 de janeiro de 2015

Quem sou eu? A desorientada que acorda de manhã, sem saber em que planeta ou encarnação se encontra? A energética do meio-dia, andando de lá para cá, começando mais tarefas do que consegue terminar? A sempre-repleta do pós-almoço, dividida entre a gulodice e a disfunção hiatal? A que quer estar na rua quando está em casa e, na rua, não vê a hora de voltar pra casa? A feliz e cheia de paz no final da tarde, que lê na varanda, enquanto o mundo fica banhado na luz rósea do pôr-do-sol? A mal-humorada e impaciente quando precisa conviver contra a vontade? A seriemaníaca e noveleira noites em claro em frente à TV? O fantasma trôpego que acorda na madrugada para ir ao banheiro? A que se recusa a pendurar as sapatilhas? Ou aquela absolutamente feliz no momento em que a caneta desliza sobre o papel?

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Haja paciência

Clotilde Tavares | 7 de janeiro de 2015

mafada-pensar

Na loja de material de construção, encomendo uma tinta que demora a ficar pronta. O vendedor diz: “A Sra. aguarde, sentadinha ali naquela cadeira.” Eu penso que se eu fosse uma mulher aí de mais ou menos 40 anos e alta, ele não tinha usado o diminutivo comigo. No Pilates era a mesma coisa: “Agora vamos colocar o bracinho aqui, depois o pezinho ali…” Essas pessoas se dirigem ao velho, principalmente quando ele é baixinho/a como eu, como se estivesse falando com algum tipo de criança retardada. Acho que é uma forma de carinho, uma forma de ser gentil. Lá fui eu procurar a cadeira e agradeci: “Obrigada, amiguinho. Boa tardezinha pra você.” Ele olhou assim pra mim como quem olha pra uma pessoa doida e foi embora cuidar da vida dele.

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O contexto

Clotilde Tavares | 2 de janeiro de 2015

Casablanca-001

No meio de uma palestra sobre teatro, levanta-se um camarada da plateia e me diz:

“Posso fazer uma pergunta impertinente?”

E eu:

“Não existem perguntas impertinentes; existem pessoas impertinentes. Mas vá em frente.”

E ele, depois das risadas da plateia, tasca:

“É verdade que na semana passada, depois que a senhora assistiu a peça Fulana-de-Tal, saiu do teatro dizendo que nunca mais ia voltar a ver uma peça na cidade?”

“É sim”, respondo, tranquilamente. “É verdade. Saí do teatro aborrecida, porque o espetáculo não me agradou e a cadeira era dura, minhas costas doíam. A afirmação foi um desabafo que fiz para quem estava na minha companhia e que você deve ter ouvido, ou alguém lhe contou, obviamente sem conhecimento do contexto.”

O contexto, minha gente. Não podemos esquecer o contexto – a peça sofrível, a dor nas costas, a cadeira dura.

Para demonstrar, pergunto à plateia, incluindo o meu interlocutor impertinente:

“Alguém sabe o que quer dizer a frase ‘Ainda teremos Paris’?”

Ninguém sabia. Para saber, é preciso assistir ao filme Casablanca, a obra prima de Michael Curtiz.

Em tempo: dois dias depois da fatídica frase lá estava eu no teatro de novo, assistindo outra peça. É como beijar de novo a boca que você prometeu esquecer.

Quem nunca?

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Um tipo de leitura

Clotilde Tavares | 1 de janeiro de 2015

A leitura melhor de todas é aquela que suscita pensamentos. Leio dez livros desses escritores modernos, que estão por aí ganhando prêmio e nada vem à minha cabeça. Mas imagine, por exemplo, o Grande Sertão, de Guimarães Rosa. Nem bem leio uma página que me levanto dali, acesa, inquieta, a cabeça variando de tanto insight que me chega. Aí caminho pela casa, lavo coisas na pia, mudo objetos de lugar, porque o pensamento em mim exige algo para as mãos, uma tarefa mecânica. E penso em todos os livros que quero escrever, e textos, e peças, e memórias, sabendo que não vou poder, que não vou ter tempo, porque para escrever qualquer coisa eu preciso pensar muito, dez, vinte vezes mais. Enquanto a espuma carrega a gordura da louça e depois é carregada pela água, os pensamentos escorrem um atrás do outro e eu preciso de espaço, caminho pelo apartamento, vou à varanda e espalho minha vista sobre a cidade, e parece que ouço tudo que se passa em cada canto dela…

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O PAVÃO MISTERIOSO: quem é o autor do romance?

Clotilde Tavares | 30 de julho de 2014

Por conta dessa minha paixão pelo folheto de cordel “O Pavão Misterioso”, sempre tem gente me perguntando isso ou aquilo sobre essa obra. E é uma peça literária tão rica e variada que qualquer dia desse reúno tudo que já escrevi ou pensei a respeito do “Pavão…” e escrevo um livro somente sobre ele.

Um dos aspectos sobre o qual mais me perguntam é a questão da autoria. Uns dizem que o autor do folheto é João Melquíades Ferreira, enquanto outros sustentam que a autoria pertence a José Camelo de Melo Rezende.

No excelente livro “Memória das Vozes: cantoria, romanceiro & cordel” (Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2006), na página 68 e seguintes, Idelette Muzart-Fonseca dos Santos nos conta a história dessa controvérsia.

Ela relata que nos anos 1920, José Camelo era cantador de viola pelo interior da Paraíba mas, não sendo bom improvisador, preferia compor romances em versos e cantá-los. Foi assim que compôs a história do Pavão, que cantava por onde ia, em dupla com seu parceiro Romano Elias. Em 1927 Camelo se envolveu com um crime, e teve que passar um tempo no Rio Grande do Norte. Enquanto ele estava sumido, saiu uma edição do folheto tendo como autor o poeta João Melquíades Ferreira.

Quando José Camelo voltou à Paraíba, publicou o romance por sua conta, incluindo no início uma nota acusatória a João Melquíades que aqui transcrevo.

Quem quiser ficar ciente

da história do pavão

leia agora este romance

com calma e muita atenção

que verá que essa história

é minha e de outro não.

 

Há muitos anos versei

essa história e muitos dias

fiz uso dela sozinho

em diversas cantorias

depois dei a cópia dela

ao cantor Romano Elias.

 

O cantor Romano Elias

mostrou-a a um camarada

– a João Melquíade Ferreira

e este fez-me a cilada

de publicá-la porém

está toda adulterada.

 

E como muitas pessoas

enganadas tem comprado

a diversos vendelhões

o romance plagiado

resolvi leva-lo ao prelo

para causar mais agrado.

 

Portanto eu vou começar

a história verdadeira

na estrofe imediata

e no fim ninguém não queira

dizer que ela é produção

de João Melquíade Ferreira.

E aí José Camelo segue com as estrofes do romance, que tem pouquíssimas diferenças daquelas publicadas por Melquíades. Infelizmente, apesar dos cantadores e poetas da época confirmarem a história de José Camelo, a retificação não surtiu muito efeito e, em várias obras que foram escritas depois sobre a literatura de cordel, o folheto é referido como sendo da autoria ora de Melquíades ora de José Camelo, como na “Antologia da Literatura de Cordel”, de Sebastião Nunes Batista, onde ele credita o folheto a ambos os poetas. Descendentes de Melquíades, com razão, ficam abespinhados quando, em algum artigo ou texto, se atribui a autoria a José Camelo.

Para mim, baseada em tudo que li e ouvi, aceito que “O Pavão Misterioso” é da autoria de José Camelo de Melo Rezende. Estou convencida tendo como base a argumentação de Idelette Muzart, que considero uma pesquisadora séria e competente. Além disso, desde jovem, sempre soube – não me perguntem como – que o Pavão era da autoria de José Camelo, vindo tomar conhecimento da controvérsia Camelo/Melquíades já adulta, quando comecei a ler, estudar e pesquisar o tema.

“O Pavão Misterioso” é uma história de eterno encantamento para os meus ouvidos. A literatura de cordel, apesar de escrita, é feita para ser lida em voz alta, e as estrofes dessa obra imortal continuam ecoando na minha mente, na voz de Mamãe, que lia para a gente ouvir sentada no batente da porta, nas noites da minha infância em Campina Grande.


Achei aqui a imagem que orna este post. Não consegui descobrir quem é o “Ari” da assinatura. Penso que é Arievaldo Viana, mas não tenho certeza. Se alguém souber, quem sabe o próprio “Ari”, é só entrar em contato que dou o crédito. Aliás, achei essa imagem tão bonita que imprimi e colei na capa de um dos meus cadernos. 

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Dez moedas de ouro

Clotilde Tavares | 28 de julho de 2014

moedas

Essa é uma história acontecida há muito tempo, nas eras medievais. Dizem que um jovem apaixonou-se perdidamente pela bela mulher de um comerciante com o qual ele negociava. A mulher era tão linda que parecia uma santa, e o rapaz ficou encantado com aquele rosto alvo e puro, com aqueles olhos azuis e com a boca delicada, rósea como um botão recém-colhido. O corpo era esguio, flexível e quando ela andava parecia deslizar, flutuando sobre o solo.

Romântico, o jovem compôs logo alguns metros de pura poesia lírica e mandou entregá-las à jovem por um menino de recados, porque acreditava-a virtuosa mas não inacessível, e tinha fé que ela, mesmo casada, se rendesse ao seu amor. Mesmo que houvesse uma certa resistência durante algum tempo, ele confiava na sorte e estava pronto para uma longa e dedicada corte.

Qual não foi sua surpresa quando o menino voltou e lhe avisou que a mulher, assim sem mais nem menos, e sem sequer ler o poema que lhe tinha sido enviado tinha dito que sim, que aceitava, e que se deitaria com ele naquela mesma tarde por dez moedas de ouro!

Vendo o seu ideal cair por terra, e ainda surpreso pelo rumo que as coisas tinham tomado, o rapaz logo se recuperou e começou a pensar em um jeito de castigar a dama pelo caráter interesseiro e mercenário. Pensou, pensou, pensou, e teve uma ideia.

Foi à loja do marido – que era comerciante e conhecido dele, como o meu caro leitor deve estar lembrado – e pediu-lhe dez moedas de ouro emprestadas. De posse do dinheiro, e depois de se certificar que o marido estaria o dia inteiro fora, dirigiu-se até a casa da mulher onde se apresentou, entregou-lhe o dinheiro e observou quando ela guardava as moedas na gaveta de uma mesinha que havia na sala. Em seguida, dedicou-se por toda a tarde às artes amorosas, na cama, no tapete, na varanda, no jardim, e onde mais lhe deu vontade, gozando o ardor da dama, até que se deu por bem pago pelas dez moedas de ouro. Voltou para casa à tardinha, onde banhou-se, jantou e aguardou que a lua se erguesse sobre os telhados da cidade.

Aí, foi novamente à casa da mulher, sendo recebido dessa vez pelo marido, que já havia chegado da loja. Sentou-se, aceitou um copo de vinho e informou ao comerciante que não ia demorar:

– Só passei aqui hoje à noite – disse o jovem – para lhe avisar que não precisei do dinheiro, e como não quis ficar andando por aí com quantia tão elevada, achei melhor passar aqui e deixar com sua esposa. Ela guardou as moedas na gaveta daquela mesinha.

O marido se virou para a esposa que, sem jeito e sem poder negar, mesmo porque o dinheiro ainda estava onde ela havia guardado à tarde, disse-lhe que realmente assim havia sido, e que tinha se esquecido de avisar-lhe.

O moço então se retirou, não sem antes atirar um olhar de desprezo para a mulher gananciosa e baixa que o tinha enganado com sua aparência de santa de altar. Se ela tivesse traído por amor, provavelmente a desculparíamos. Mas como traiu por dinheiro, tanto eu como você, caro leitor, estamos agora mesmo dizendo a mesma palavra: bem feito!

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Moda e geografia

Clotilde Tavares | 31 de maio de 2014

 

Ela pode!

Ela pode!

Eu tenho birra e impaciência com o atendimento em lojas. Não gosto que perguntem meu nome, porque não estou ali para fazer amizade e sim para fazer uma compra, Também me sinto estranha quando uma mocinha que eu nunca vi e provavelmente não vou ver de novo fica me tratando pelo meu primeiro nome, Clotilde-pra-lá, Clotilde-pra-cá. Algumas me chamam até de “Matilde”. Fazer o quê? Trato todo mundo com delicadeza, de Senhor e Senhora, até que a pessoa me dê cabimento. Se não dá, continuo na cerimônia. E gosto de ser tratada do mesmo modo. Mas agora, comprar qualquer coisa numa loja é iniciar um processo de relacionamento com o vendedor, um processo às vezes inusitado. Já falei sobre isto neste blog, aqui e aqui.

Terça feira que passou fui comprar uma sandália. Entro numa dessas franquias de calçados do shopping e a vendedora, por não ter em estoque sandália no meu número, me ofereceu uma bota. Cano longo, segundo ela, ficaria ótima para mim. 

Isso me lançou numa dúvida estética terrível, porque sempre achei que eu, com um metro e cinquenta e sessenta e nove quilos, pernas curtas e grossas, não fico muito bem com uma bota de cano longo. Como recusei, e ela insistiu, aleguei que queria mesmo uma sandália. A gentil vendedora usou então outro argumento. Você já sabe qual: o argumento de que a bota é o calçado mais apropriado para o inverno.

– Mas inverno aqui em Natal? –  pergunto eu.

E ela, didática:

– Bem, “Clotilde”, nós trabalhamos com as coleções de inverno porque nos baseamos nos lançamentos da última moda na Europa, e lá agora é inverno.

Então pirei de vez, caro leitor. Sempre pensei que nessa época fosse primavera na Europa, preparando um verão para o mês de julho, agosto, mais ou menos. Como já cheguei à conclusão de que não entendo de moda, devo estar desatualizada também quanto ao clima e à geografia.

Preciso com urgência me atualizar. Para os assuntos de moda, tenho a minha amiga Gladis Vivane e seu maravilhoso blog Salto Agulha. Mas para Geografia, ainda não sei a quem recorrer. Quem se habilita?

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atendimento em lojas, Moda, padrão de atendimento, vendedor
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Leio, logo existo.

Clotilde Tavares | 28 de maio de 2014

Passei a tarde de ontem espalhada no sofá, na companhia de “Como e por que ler”, do crítico Harold Bloom.

O bom deste livro, pelo menos para mim, é que ele me remeteu a leituras que nunca mais eu tinha feito, como Jorge Luís Borges. Reli com extremo prazer “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, recomendado por Bloom, e de quebra li outras coisas das quais gosto muito, como “Funes, o Memorioso” e “Aproximação a Almotásim”. Também dei por falta na estante dos meus exemplares de “O Aleph” e “História Universal da Infâmia”. Emprestados não foram, pois tomo nota de todos. Devem estar perdidos em outras estantes, quem sabe entre os livros de teatro ou de folclore.

Falando sobre o hábito da leitura, Bloom diz que crianças criadas em frente da TV e que passam a adolescência na frente do computador realmente não formam esse hábito, e chegam à Universidade completamente refratárias a esse estranho objeto chamado livro.

Eu que o diga. Quando ensinava na UFRN, todo ano passava pelo mesmo tormento de explicar aos meus alunos que um curso universitário implica em leitura, sim; e que não podemos ler apenas um livro por semestre. Muitos achavam “absurda” a “exigência” que eu fazia para que eles lessem de três a quatro livros sobre os temas estudados.

Quem não tem hábito de ler, não sabe o que está perdendo. A leitura nos livra da solidão, nos faz viajar sem gastar dinheiro e ajuda a gente a se entender melhor, e a compreender os outros.

Numa entrevista de Bloom, lembro que ele dizia que “uma democracia depende de pessoas capazes de pensar por si próprias. E ninguém faz isso sem ler.”

Passo sem computador e sem Internet. Mas sem livros, não me atrevo sequer a pensar.

(A foto é da minha estante.)

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Borges, Como e por que ler, hábito de leitura, Harold Bloom, literatura. Jorge Luís Borges
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Fome

Clotilde Tavares | 27 de maio de 2014

 

Dormia sossegada debaixo de uma pedra. O sol me aquecia e eu estava tão profundamente mergulhada no sono que não percebi quando o escravo se aproximou e jogou sobre mim um cesto, onde fiquei presa. Cobriram-me com um pano e me levaram para longe. Fui ficando irritada, impaciente e com fome. Adormeci outra vez.

Quando acordei estava escuro ao meu redor, e pela trama do tecido que cobria o cesto não passava mais nenhuma luz. Devia ser noite. O cheiro de essências e de perfumes era forte. Pessoas cruzavam o aposento, que era grande, pois eu ouvia o eco de suas vozes nas paredes. Havia agitação e ansiedade no ar. Eu estava morta de fome, e comecei a me agitar, e a silvar. Minha língua estava seca.

De repente, tudo ficou calmo. Alguém pegou o cesto, tirou o pano de cima, e eu vi, pelas frestas da palha, a luz das tochas tremeluzindo nas colunas e iluminando as pinturas das altas paredes. Ah! Como eu gostava do lápis-lazúli, tão diferente do ocre monótono que sempre me cercava.

Uma mão fina de unhas negras e longas penetrou no cesto e me tomou com delicadeza, quase com carinho. A mulher bateu de leve as pestanas e me aninhou entre os seios. Senti o calor, o latejar da artéria e, inebriada com o almíscar daquela pele, cravei ali as presas e misturei minha saliva com o sangue doce da rainha.

 

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Joaninha

Clotilde Tavares | 23 de maio de 2014

joaninha

Joaninha sofre todo dia com o marido. Baixinho, magrinho, só tem nervo, tendão e osso. Come feito um bicho, doido por carne gorda, mas tanta gordura ninguém sabe o que o corpo faz dela, deve ser para alimentar a ruindade. O dia todo dentro de casa, na cizânia, na intriga, tecendo, reclamando, ciumando, desconfiando, aborrecendo Joaninha, mexendo nas coisas, abrindo as gavetas, destampando as panelas, botando defeito em tudo, uma praga. De noite, na hora da cama, quer sempre, quer toda noite e demora fazendo. Joaninha, nada. Os filhos dizem: “Mãe, ninguém sabe como você aguenta o pai.” E é porque eles nem sabem da cama.

Um dia ele vai dormir e acorda morto. Vem o padre, olha, benze, deve ter sido derrame, está morto mesmo, foi derrame, diz o padre. Naquelas lonjuras, sem médico sem nada, é o padre quem atesta. E fazem o enterro. Aí, Joaninha vive sossegada e feliz. Até casa de novo, com um bem mais novo do que ela – e gordo.

Trinta anos depois, Joaninha morre. Os filhos vão abrir o túmulo para enterrar a mãe e encontram os ossos do pai, já limpinhos.  No crânio sem olhos, há uma saliência no alto da cabeça. O filho mais novo, curioso, passa o dedo, enfia a unha entre aquela coisa e o crânio, e puxa, devagar, o prego caibral de doze centímetros, batido por mão segura e determinada, há 30 anos.

______________

(A imagem que ilustra este texto é um quadro do pintor peruano Albert Lynch (1851–1912).

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